Cada um é uma cultura. O seu contexto, a sua educação, o seu cosmos, maior ou mais reduzido. Somos nós e as nossas contingências, na frase popularizada de Ortega y Gasset, tantas vezes usada numa interpretação que desculpa e retira responsabilidade.
Quando saímos do ecossistema onde temos um lugar certo e inquestionável, onde somos parte de uma mobília, o chamado espaço, ou lugar, de conforto, percebemos melhor as diferenças e, dessa forma, como uma aplicação pedagógica, damos mais valor ao que temos e somos.
Recentemente chegado ao Brasil, procuro perceber melhor os ritmos e os hábitos. Nas diferenças, consigo chegar ao que me difere da cultura que me recebe e, ao mesmo tempo, tomo consciência do que, afinal, sou eu, do que me recheio.
Nos restaurantes, onde acabo por jantar tantas vezes, percebo uma diferença muito significativa face aos hábitos em Portugal. Se, nas terras lusas, um casal se senta, quase sempre, frente a frente, no Brasil esse sentar cúmplice é, lado a lado. É a posição maioritária dos casais. Questiono-me. Interrogo-me sobre o significado.
Na arqueologia que faço, da minha vida, dos meus sentares, recordo um momento genesíaco, tido há mais de dez anos, numa mesa de um restaurante, contigo, Zé. Tudo me levava a crer que seria um momento fundamental, mas o correr da vida mostrou-me que era isso, e muito mais!
Sentei-me com ela, nem de lado, nem de frente; foi o suficientemente de frente para a olhar nos olhos; foi, também, o suficiente de lado para lhe dar a mão, para que o toque tivesse lugar. Ao fim de mais de uma hora, depois de termos deixado os pratos com quase toda a comida que nos tinha sido servida, beijei-a. Dei-lhe o beijo que qualquer um deseja dar a uma princesa, transformando-se em príncipe. Não o sou, mas nesse almoço, fui-o, por, e com ela: ambos acordámos, força do gesto e do seu significado, para uma nova vida que é proposta até hoje, pelos tempos e pelas dimensões.
Tal como eu, na minha história partilhada e comum de vida, tenho à minha frente, num restaurante no famoso Embu das Artes, um casal bem quarentão que agarra, como eu o fiz, a oportunidade do Amor. Lado a lado, como aqui se sentam os casais, numa mesa de um muito interessante restaurante, depois de muitos toques, muitas carícias que essa posição permite, ele deu-lhe um anel de noivado. O espanto, a cenografia do gesto, foi de levar às lágrimas. Era domingo de Todos os Santos, e eles celebraram a Vida santificando-se!
Só, a muitos quilómetros de Lisboa, recordei e vivenciei, como num psicodrama, o que vivera com 40 anos, há uma dezena de anos, e recuei no tempo, quando num restaurante, sobre a praia de Carcavelos, me recriei para o resto da vida. Era náufrago e surgi novamente das águas, qual Afrodite de Botticelli, que no máximo do Erotismo nos dá o pleno do Espírito.
Lado a lado, na metáfora da vida abraçada em conjunto, revejo-me na capacidade de tornar a não se apenas eu, mas um nós. Obrigada por me teres levado a redescobrir-me.
A ti, minha companheira.
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