A Diretiva 4/2020 da Procuradora Geral da República sobre o exercício de poderes hierárquicos em processo penal é apenas um dos sinais de um processo de funcionalização do Ministério Público que deve preocupar não só os magistrados, mas também a sociedade em geral.
Com a interpretação vertida nesta diretiva, o MP deixa de ser um corpo de magistrados e passa a ser constituído por um corpo de funcionários que cumpre e obedece a ordens da hierarquia, que podem condicionar livremente as investigações em curso, com elevado risco de instrumentalização por parte do poder político, aproximando o modelo português tido ao nível europeu como moderno e menos permeável à influência política, dotado de autonomia e independência próprios de uma verdadeira magistratura, num modelo mais funcionalizado e permeável a interferências externas.
Mas muitos outros sinais desse caminho da funcionalização estão a inquietar os magistrados do Ministério Público.
O preenchimento de lugares nos DIAP Regionais ou no DCIAP, onde se investiga a criminalidade económico-financeira, os crimes de corrupção e associados ao exercício de cargos políticos, deixou de ser efetuado com base em critérios objetivos, como a classificação de serviço e a antiguidade, para, com pretexto numa seleção pelo mérito, se apelarem a critérios como a motivação ou apreciação curricular, com uma elevada carga de subjetividade, assistindo-se, muitas vezes, à escolha de magistrados menos experientes e mais facilmente manipuláveis, o que conjugado com a ideia de hierarquia sustentada na diretiva torna-os permeáveis a uma intervenção hierárquica condicionadora da sua autonomia e mais vulneráveis a uma instrumentalização por interesses que não os da legalidade e objetividade na condução das investigações.
O que acima se refere a propósito dos referidos departamentos tem-se estendido a outros lugares de coordenação e chefia na hierarquia do Ministério Público, em que quem no Ministério Público tem uma voz mais autónoma é rapidamente arredado da possibilidade de ser selecionado para os mesmos.
Um dos outros sinais preocupantes é a crescente precaridade nos lugares onde a pretexto da escassez de magistrados (que é real) se vão convertendo lugares de efetivo em lugares de auxiliar, ao ponto de mais de metade dos magistrados estarem hoje colocados como auxiliares, sujeitos à extinção dos lugares a cada movimento, em clara violação do princípio estatutário da inamovibilidade.
Como pode um magistrado recusar uma ordem hierárquica, mesmo que ilegal, se está colocado como auxiliar e depende da hierarquia para se manter no mesmo??
Os magistrados são ainda tratados como meras peças de uma engrenagem, como números, sobrecarregados com estatísticas e burocracia, com processos de intimidação constantes, constituindo um claro processo de redução da sua função de magistrados a meros funcionários que cumprem e obedecem a ordens, roubando-lhes a sua autonomia, o seu espaço para pensarem e serem críticos.
A isto acresce uma Procuradora-Geral da República de costas voltadas para o Ministério Público, que não comunica com os magistrados, que não os ouve, que não os defende e que do alto do seu palácio em vez de defender a autonomia do Ministério Público a vai comprometendo a cada dia que passa.
Tudo isto pode encontrar explicação no facto de o Ministério Público se ter tornado incómodo para muitos interesses instalados e ser grande a tentação de o manter dentro de uma esfera de controlo político, mais dependente e mais instrumentalizável.
É a altura de refletirmos sobre qual o Ministério Público que queremos!!
Um Ministério Público autónomo é sempre incómodo.