Estava a prepara-me para as conversas na SICN e na TSFa propósito da visita do Papa Francisco a Fátima e fui procurar noticias e análises sobre cultos marianos e canonizações no catolicismo. Entre outros trabalhos, adorei ouvir o tema debatido no “Conversas à Quinta” do Observador, onde José Manuel Fernandes conversa comJaime Nogueira Pinto e Jaime Gama. Queria ter ouvido mais Jaime Gama, que estava a trazer uma perspectiva da espiritualidade essencialista à natureza humana, partindo mesmo de um perspectiva secular e histórica. Havia, na sua explicação algo que nem os padres que admiro conseguem transmitir. Um elemento humano, laico, na experiência do transcendente.
Depois fui ler os textos do Frei Bento Domingues e do Padre e Filósofo Anselmo Borges. Dois bons amigos de há longa data. E encontrei mais pontos de vista interessantes. Já não surpreendem as suas escritas e opiniões liberalistas relativamente à crucificação de cristo e ideia de sofrimento, da dor, da ideia de pecado, da presença de mulheres na liderança da igreja, e até a admissão de padres casados.
Tive também o privilégio de consultar outro amigo, um católico devoto e um antropólogo, o Jason Keith Fernandes, que em muito me ajudou a entender, entre outras, mais as semelhanças do que as diferenças entre os santos católicos e os Pirs e Dai’ do Shiismo Ismaili, e a importância de Maria no Alcorão. Através dele tive também acesso a um belíssimo texto pascoal do Papa Francisco a propósito do Outro como um presente que recebemos e que devemos saber receber e cuidar.
A partir do que ouvi e li, resultou uma reflexão sobre a possibilidade de Maria poder ter sido muito mais central na teologia cristã, não sobrevivendo no entanto, a uma visão patrilinear e masculinizada de povos profundamente misóginos, que eram não apenas os de onde saiam os renegados que viriam a contactar com Muhammad na Arabia, e que passaram a dominar as igrejas cristãs até hoje, como também dentro da própria arábia pré-islâmica que, como sabemos, se relata como sendo também eminentemente misógina. Neste sentido, creio que Muhammad foi, nesta minha interpretação mariânica, um pioneiro do feminismo islâmico. O profeta do Islão parece ter tido a inspiração liberal e libertadora, ao falar de Maria como falou, e reconhecer-lhe o protagonismo, dedicando-lhe um capítulo inteiro do Alcorão. Esta minha ideia poderá servir de hipótese de trabalho, a partir da qual se possa investigar sobre os primórdios de uma matrilinearidade islâmica, ou de uma nova ordem social assente numa teologia mais paritária em matéria de género. Independentemente de estar certa ou errada relativamente a uma profecia de paridade de género, o que é certo é que precisamos urgentemente de teólogas e juristas do sexo feminino. Tenho-o dito, por exemplo, a estudantes de direito que me consultam para conhecer a Sharia islâmica.
A teologia de tipo matrilinear ausente nas teologias abrahamicas poderá ser tema para debates e tenho a certeza de que produziria novidades interessantes a este mundo (ainda) profundamente misógino. Afirmo isto com a convicção de quem não precisa de fazer grande esforço para olhar à sua volta e perceber que paridade de género é sempre um sonho e nunca a realidade.
Num momento de pausa de leituras, se ligar a televisão, principalmente a horas nobres – aquelas que ou coincidem com o jantar ou com o serão de repouso, só ouvimos e vemos homens a falar de coisas que tipicamente os homens fazem. É o vazio do mundo feminino; e não é que elas não existam! As Mulheres e a importância do que fazem por esse mundo fora, é bizarramente negligenciado. A invisibilidade propositadamente criada de metade da existência humana, sem a qual de resto, nenhum de nós cá estaria, é bizarramente celebrada nas sociedades liberais e liberalistas! Basta olhar e ouvir quem fala do quê. E conversam horas…! São horas e dias, inteiros a falar sobre o futebol – masculino!- e sobre política – masculina outra vez!- e, pasme-se, sobre os cultos a Maria – só com vozes masculinas. Outra vez! Todas interessantes devo admiti-lo. Mas profusamente enviesadas porque o olhar ambíguo não encontra espaço para se manifestar.
Foi quando ouvi Jaime Gama, com aquela sua voz solene e doce, de um pai que conta uma história que toca ao coração para dar aquele sono bom, que pensei, ah! Como gostaria de conseguir falar como ele; sem stress de tempo; de tempo de antena; se pudesse chegar à idade dele e poder falar com o tempo que eu quero e preciso, sem ser interrompida… porque sim, esta gente atingiu um patamar de reconhecimento que lhes permite falar sem ser interrompido. Tiveram tempo para ganhar este tempo. Estão ali para ser escutados. Ser escutada! Ah, é tão importante! Um dever social e de boa socialização. Quantos problemas no mundo se resolveriam se nos escutássemos reciprocamente.
Imaginei que no lugar destes doutores, padres e filósofos,estariam mulheres. A falar sobre Jesus e Maria. E Muhammad. E leis. E política. E futebol. Como seria? Já pensaram? Não, não me venha dizer que falam sobre tudo isto… sim, ocasionalmente falam. Mas realmente, será efetivamente paritário o tempo, o modo, osconteúdos? Lamento, mas não. Porque a essas horas, com esse tempo todo, as mulheres já foram tratar de milhentas coisas relacionadas aquilo para que foram preparadas para fazer; ou seja, grande maioria das mulheres, não obstante o tipo de trablho de desenvolvam, foram socializadas para a instrumentalidade das suas existências: E o mais provável é que, a poder parar, quando não têm de se sentar às suas secretarias para terminar as suas “deadlines”, elas estão mortas de cansaço, deitadas ou no sofá ou na cama, a ler as páginas de um livro, sim porque ler livros também é importante para a cultura geral, que lhes ajuda não tanto a viajar intelectualmente, mas a adormecer quase imediatamente.
Uma situação caricata sobre esta relação de assimetria de género foi a de ter preparado eu mesma, uma mesa redonda no ISCTE onde fiz questão de ter um número paritário de homens e mulheres para um assunto político e social de enorme importância e de uma das desistências de ultima hora ter sido a de uma mulher que detém um cargo público importante na política e que, na impossibilidade de alguém mais cumprir essa tarefa, ter tido que ser ela a ir buscar a sogra ao centro de dia. O outro for ter visto o Aga Khan ensemble – um grupo e músicos maravilhoso – ser atuado só com homens e semnenhuma mulher! Eu já vivi pelas terras da Asia Centrale contactei com inúmeras mulheres na arte musical e instrumental. Disseram que havia uma, mas que, à ultima hora, não pôde vir. Porque será? Terá sido como a autarca que convidei? Uma sogra, uma criança doente… é sempre a mesma coisa. E não, não é a religião que é responsável por esta desigualdade de género. Assumamos de uma vez, que o problema somos nós. É a sociedade; somos todos nós, atores sociais, que temos a capacidade de agência, de co-construir a nossa realidade. Os problemas da invisibilidade do feminino na esfera pública, no pensamento e ação, na teologia e na ordem mundial, são críticos, e clamam pela mudança para a paridade. E esse caminho passa, a meu ver, principalmente por sermos capazes de escutar o Outro. E seremos capazes de escutar?
(1) Santos e missionários sabtificados no Islão Xiita