“E o quarto anjo derramou a sua taça sobre o sol, e foi-lhe permitido que abrasasse os homens com fogo.”
Apocalipse 16:8
Tal como o medo de uma grande destruição pela água, semelhante imagem através do fogo deve ser uma das mais sólidas representações de medo que humanidade consolidou ao longo de milhares e milhares de anos, de milhares e milhares de incêndios devastadores.
Não será por acaso que aquela que é considerada a primeira paisagem natural pintada, numa parede de uma casa em Çatal Huyuk, na Anatólia, a mais antiga cidade conhecida do mundo (VII milénio a.E.C.), representa uma erupção vulcânica. Bíblicamente será o fogo a destruir cidades, será pelo fogo o fim dos tempos, como o trecho acima transcrito do Apocalipse nos faz lembrar.
Mais uma vez, vivemos este ano em Portugal uma vertiginosa onda de incêndios. Trata-se de um ciclo normal nos verões, este com uma maior dramaticidade que o normal. Pode ser este o momento de encontrar e compreender alguns dos medos ancestrais que nesta época tão fortemente se reavivam.
As grandes queimadas sempre foram uma arma e uma ferramenta da espécie humana desde que domesticou a agricultura há poucos milhares de anos atrás. Paralelo desse uso ainda o encontramos nas queimadas que neste século XXI ainda se fazem na Amazónia para destruir floresta e alargar a área de cultivo. Foi desta forma que se arroteou muita terra ao longo dos séculos. Foi desta forma que, provavelmente, se concorreu para a desertificação dos férteis (mas frágeis) campos que vieram a resultar nos enormes desertos do Norte de África.
Ferramenta dificilmente controlada, sempre foi alvo de duras medidas coercivas nas sociedades urbanas da nascente civilização ocidental. O «fogo posto» é um crime desde tempos imemoriais. Duas das razões que o catapultaram para essa dimensão: ser incontrolável, e estar simbolicamente próximo do caos, da forma do fim do mundo. De facto, não é por acaso que quando o Ocidente cria e estabiliza uma imagem de inferno, um mundo negativo para os mortos, o vai rechear de fogo. A morte, o fim dos tempos, será pela queima purificadora (definitiva) de tudo, até dos males, qual imagem da Sodoma e da Gomorra bíblicas.
De facto, quantas cidades não foram destruídas pelo fogo? Seja numa conquista onde o fogo era o castigo máximo, seja num desatento descuido que fazia perigar toda uma cidade em época de construção em madeira e de bombeiros inexistentes. Seja, obviamente, por mão criminosa? No final do século I o cristianismo vai sofrer na sua representação a acusação de ter incendiado Roma…
Mais tarde, na época do nascente cristianismo, no desenrolar do mito em que se transformou o célebre incêndio de Roma na época de Nero, encontramos muito desses medos ancestrais
aliados a essa nascente religião. Para os cristãos será a prova da insanidade dos césares, para os pagãos será a imagem da impiedade dos cristãos que não adoravam os deuses da cidade de Roma. O incêndio é “prova de fogo” para todos, acusação máxima que justificará perseguições, a uns, e, a memória destruída, para Nero.
De facto, o cristianismo irá herdar em bloco essa simbologia, misto de purificação e de destruição, desenvolvendo-a, sempre aliada a uma imagem de fim. Na Idade Média o fogo posto passa a integrar a “lista” de pecados que implicavam penitência. Isto é, ser-se rapado, coberto de cinza e metido na prisão durante a Quaresma, saindo depois em Quinta ou Sexta-feira Santa. No século IX algumas das sanções a que o penitente estava, teórica e religiosamente, sujeito eram: não poder exercer a actividade das armas, não poder ser proprietário, não poder fazer negócios, não poder recorrer aos tribunais, não poder entrar numa Ordem, não poder casar, ou, se era casado, não poder viver com a mulher.
Dois séculos depois, quando o Purgatório foi inventado, obviamente o fogo teve nova funcionalidade nesse “estágio” que todos os pecadores, desde que não condenados logo á partida, tinham de cumprir.
Nas “inquisições” que nascem nos séculos XIII, com auge no célebre Malleus Maleficarum (o Martelo das Bruxas, de seu nome mais popular), de finais do século XV, o fogo era tantas vezes usado como afinador de inocência, ficando queimados os que efectivamente eram culpados. “Pôr as mãos no fogo” e “Prova de fogo”, são alguns dos adágios que nos ficaram desse uso simbólico do fogo.
Muito mais perto de nós, na cidade lisboeta destruída pelo terremoto de 1755, vemos nascer uma nova forma de religiosidade, fruto do pânico e da memória de morte contida nos escombros da cidade. Quem olhar atentamente para os “registos de santos” em azulejo que decoram tantas casas setecentistas e oitocentistas dos bairros históricos, pode ver uma dominante: S. Marçal. Muitas vezes esses registos, ao fundo, têm um incêndio, recordando a destruição de que a cidade foi alvo, mas também lembrando de quem este santo é patrono, os bombeiros. É uma memória mas também como que uma forma de protecção.
Desaguando no nosso tempo, passados muitos séculos, depois de muito se ter morrido com fogo, o Direito Canónico de 1917 (can. 2345) refere o fogo posto com danos graves como sujeito a “penas eclesiásticas” e o seu perdão reservado ao bispo.
De facto, para o bem e para o mal, o fogo, religiosamente, queima. A nós, herdeiros deste longo percurso, não pode deixar indiferentes pelo grau de destruição e de abalamento mental que nos infringe.