Andrew Solomon é um reputado jornalista anglo-americano que, a partir da sua vivência pessoal escreveu em 2001 um extraordinário livro sobre a depressão. Agora editado em Portugal com o nome “O demónio da Depressão – um atlas da doença”, foi qualificado pelo “The Times” como um dos 100 melhores livros da década.
Homossexual assumido, casado com John Habich e pai/mãe de uma família alternativa compósita, tem tido uma posição relativamente à psiquiatria oposta a outros radicais de causas fraturantes como ele, que não tendo vivenciado o sofrimento depressivo têm escrito sobre a sua inexistência como doença mental. Depressão seria assim um conceito construído pela psiquiatria e pelos seus interesses para qualificar a tristeza e a angústia existencial normal que o ser humano dos tempos modernos não estaria disposto a suportar.
Tudo isto a propósito de uma entrevista do também reputado jornalista de investigação americano Robert Whitaker, publicada no “El Pais” em 7 de Fevereiro último. Nessa entrevista, Robert Whitaker afirma que há evidencia que as doenças mentais não têm um fundamento biológico e conclui, como habitualmente na narrativa antipsiquiátrica, com a teoria conspiratória dos interesses lucrativos da indústria farmacêutica no mundo do sofrimento psicológico e com isso negando a existência de doenças mentais.
Lendo ambos os autores e percebendo os campos opostos em que se posicionam relativamente à questão substancial da existência de doenças mentais tentemos perceber o que neles é semelhante.
- São ambos jornalistas
- São ambos jornalistas premiados com trabalhos de investigação na área médica
- São ambos jornalistas de irrepreensível ética
Distingue-os, para além de múltiplas outras razões de vida menos relevantes, o facto de um sofrer de Depressão (Andrew Solomon) e outro não (Robert Whitaker).
Na verdade, na avaliação da realidade, dos mesmos números e dos mesmos dados verifica-se a um enviesamento subjectivo na forma como se extrai dessa realidade o conhecimento.
O jornalista deprimido teoriza sobre a realidade da doença mental e a necessidade da psiquiatria para o seu combate e alívio. O jornalista não deprimido teoriza sobre a fantasia da doença mental e conclui sobre a psiquiatria como uma formulação de interesses médicos, sociais e financeiros.
Ambos mostram dados e números que pelo menos na aparência são objectivamente verdadeiros. Ambos não referem ou não enfatizam dados que poderiam invalidar as suas conclusões. Ambos com base nos dados que citam constroem uma narrativa bem argumentada e com sentido. Aparentemente ambos têm razão mas, neste assunto, só um pode ter razão.
Convido assim o leitor a formular as seguintes perguntas. Existe ou não Depressão? A Depressão é uma doença? Certamente que se já sofreu um episódio depressivo não terá dúvidas em responder que sim. Se não sofreu poderá ter dúvidas ou dizer que não.
De tudo isto concluímos que a pureza da análise individual objectiva da realidade não existe. A realidade subjectiva de cada um determina a forma como avalia e constrói o conhecimento sobre o mundo.
A ciência no seu conjunto, por seu lado, (neste caso as ciências médicas) procura construir o mais objectivamente que pode, o conhecimento sobre o mundo. Contudo, a sua narrativa também acaba por não ser imune às circunstâncias históricas, sociais, culturais e aos interesses subjacentes.
Por isso como seres humanos pensantes teremos que viver com esta realidade e ao mesmo tempo sermos capazes de questionar o que vemos, ouvimos e lemos e nisso escrutinar a subjectividade inerente.
Não tenho qualquer dúvida que a vivência subjectiva de um fenómeno mental evidencia a sua própria existência ou seja, para o próprio, a sua realidade objectiva.
Como psiquiatra a subjectividade é o meu foco. Neste sentido não tenho dúvidas em afirmar a realidade da depressão que os meus pacientes me transmitem.
Por isso também Andrew Solomon tem razão.