1. O início das comemorações “formais” do centenário de Mário Soares foram extraordinariamente significativas da admiração e do apreço, no mínimo do reconhecimento e do respeito, de todos os democratas pela sua figura, pela sua ação, pelo seu legado. Todos os democratas, reforço, das mais diversas ideologias, orientações ou proveniências. O que inteiramente se justifica porque Soares é um símbolo, antes de tudo, de liberdade, da luta pela liberdade e pela democracia. Pode sê-lo também, por exemplo, da defesa da “integração europeia” de Portugal e do trabalho, chegado a bom termo, nesse sentido. Mas a liberdade, a democracia, foram o seu grande combate de sempre, antes e depois do 25 de Abril. “Republicano”, no mais amplo sentido, depois socialista ou social-democrata. Suponho que mesmo quando pertenceu ao PC, porque este era o único organizado e o que mais frontalmente afrontava a ditadura de Salazar.
Aquele início das comemorações teve expressão maior nas sessões de evocação/homenagem na Assembleia da República e na Fundação Gulbenkian. Não as podendo comentar, direi apenas que, nas primeiras, até o que “contra” Soares foi dito, vindo de quem veio, foi uma forma de o homenagear, porque um reconhecimento de que é um símbolo da democracia, por parte de quem a não a preza e não cumpre as suas regras… Nas segundas destaco a enorme afluência de pessoas, de todos os setores e muitas de relevo na vida nacional, e as intervenções de quem, estranho à política ativa (a atriz Beatriz Batarda, a cientista Maria Manuel Mota, a jornalista Catarina Gomes), veio lembrar, com o seu exemplo concreto, o que devia a Soares/25 de Abril.
Sublinho ainda o significado especial da presença nessas sessões de Ramalho Eanes, no Parlamento, e de Cavaco Silva, na Gulbenkian: por serem os dois únicos anteriores Presidentes vivos, e por ambos terem tido problemas com Soares. Sobretudo Eanes – sendo certo que as más relações entre ambos tiveram mais do que uma vez, em minha opinião, consequências políticas bastante negativas.
Acompanhei muito, e bastante por “dentro”, tudo isto, até saberei uma outra coisa não conhecida. O que hoje, porém, importa salientar, é este reconhecimento dos méritos e até da grandeza de uma figura, de uma vida, de uma ação, para lá dos desacordos e até dos confrontos circunstanciais. Aliás, entre os todos que agora, muito justa e sinceramente, “celebram” Mário Soares, não poucos – mesmo dentro do PS, como se sabe – dele muitas vezes discordaram, se lhe opuseram. E tudo o que se vai fazer neste centenário não deve ser uma espécie da hagiografia, que até não agradaria ao autor de Portugal Amordaçado, e não exclui (mas claro não em sessões como as referidas) a análise crítica a opções e/ou atos da sua riquíssima prática político-partidária.
2. Curiosamente, também há dias houve, em relação a Ramalho Eanes, uma informal mas expressiva homenagem. Refiro-me ao lançamento de um livro de entrevistas a ele feitas por Fátima Campos Ferreira (Porto Editora), que lotou por completo o auditório da Culturgest, com mais de 600 lugares sentados – ainda ficando gente cá fora.
Digamos que isso foi mais uma “prova” de que a ação e dimensão cívicas de Eanes, além das especificamente militares, a sua inteireza de caráter e o seu contributo para a consolidação da democracia em Portugal são hoje vastamente reconhecidas e independem das discordâncias quanto a algumas suas opções/decisões ao longo do tempo.
Se trago isto agora à colação, é para evidenciar que a defesa dos valores da democracia, do 25 de Abril, da Constituição da República, que já têm inimigos jurados, impõe que em cada momento as principais figuras que os representam saibam ultrapassar discordâncias e encontrar os consensos que tal defesa exige. Escrevi algo de semelhante quando começaram a surgir certos conflitos entre o Presidente e o primeiro-ministro António Costa, dizendo que a qualidade de ambos impunha um entendimento. O que acabou por não se verificar – e agora Marcelo diz que “era tão feliz e não sabia”…
À MARGEM
Os “candidatos”
No próximo ano haverá eleições presidenciais e já se fala de muitos nomes. Por mim, creio que para ser Presidente e “representar” Portugal não basta currículo político-partidário ou ter cumprido com êxito uma difícil missão – antes se exige, pelo menos é desejável, alguém com uma indiscutível dimensão cívica, intelectual, cultural, profissional. E também, sim, um percurso de vida em que tenha sido possível conhecer as suas ideias e avaliar a sua capacidade, desde logo política, para o exercício de tão alto cargo.
Ora, entre os eventuais candidatos de que se tem falado, enquanto não se fala de outros que o poderiam ou deveriam ser, abundam os que à partida não têm aqueles atributos. E, não sendo o “caso” mais nítido, exemplifico com aquele de cuja área política serei mais próximo, que estimo e considero ter várias qualidades: António José Seguro. Voltarei ao tema.