Angela Merkel estava claramente fora do seu elemento quando decidiu, em 2013, fazer uma visita a um ninho de start ups em Berlim. No meio de um ambiente jovem, descontraído, parou na Wooga, uma empresa que desenvolve jogos online, e quis saber mais sobre o negócio. Quando lhe explicaram que a empresa ganhava dinheiro com versões premium dos jogos, em particular com a venda de um “pó mágico” capaz de vencer os adversários, a chanceler perguntou: “As pessoas pagam dinheiro por isso?”
A pergunta mostrava a genuína incredulidade e alguma sobranceria com que os alemães sempre olharam para o mundo virtual de Silicon Valley – onde a tecnologia secundarizou o produto industrial. Poucos imaginam Merkel a fazer downloads de jogos ou apps, sobretudo depois de saber que o seu telemóvel era vigiado por Washington. Na mente alemã, a digitalização/robotização era (e ainda é) uma ferramenta da indústria. Uma ferramenta essencial, mas subordinada à qualidade, à resistência e à credibilidade do produto real Made in Germany.
Procissão de fé ou erro de cálculo? As tecnológicas californianas rondam agora a indústria que melhor representa o orgulho alemão, a automóvel. Tal como rondaram, na última década, outro ícone europeu: a Nokia, entretanto desaparecida. A ‘Nokialização’ da indústria automóvel europeia é um risco e depende dos gigantes do setor conseguirem dar um salto para o digital ou mostrar outro trunfo. Com excelentes recursos humanos, técnicos e financeiros – apesar do caso das falsas emissões ter abanado a VW –, a indústria europeia tem argumentos para contrariar a tendência. “Os próximos dez anos vão ser mais excitantes que o último século” já admitiu Dieter Zetsche, CEO da Daimler (Mercedes).
Sentadas em verdadeiros cofres Patinhas de liquidez, a Apple, a Google e outras não escondem a ambição em entrar no mercado das quatro rodas e, através de golpes de marketing e domínio das redes sociais, pôr todos a debater mais a autonomia ou o alcance dos ecrãs tácteis dos carros do que a potência do motor ou o número de pistões. Mais o software que as engrenagens. E conquistar aqueles para quem um carro é apenas um meio de ir do ponto A ao ponto B, com as menores considerações mecânicas possíveis e o máximo de conectividade com o exterior.
Um dos últimos sinais do incómodo com as investidas tecnológicas de Palo Alto veio esta semana do ministro alemão dos Transportes, que advertiu a Tesla para parar de fazer campanha publicitária ao piloto automático dos seus carros. A estratégia defensiva alemã costuma ser sinónimo de nervosismo. A Tesla, empresa criada em 2003 e especializada em carros elétricos, está a monopolizar demasiada atenção por ter uma tecnologia à qual a indústria alemã chega atrasada.
Como aliada, o setor europeu tem a regulação comunitária ou a falta dela. Os EUA não só já aprovaram um quadro regulatório para a nova geração de carros de piloto automático, como o próprio Presidente Barack Obama é um dos embaixadores da tecnologia. Em Bruxelas, o pelouro está dividido entre três comissários e antes de 2019 esperam-se poucos progressos. Três anos que podem ser estratégicos para as marcas alemãs apresentarem a sua própria versão de um carro de piloto automático. E vitais também para todos os países da União Europeia, como Portugal, em que pólos como a AutoEuropa têm um peso determinante na riqueza nacional
A ofensiva californiana é improvável que acabe por dar razão às suspeitas de Merkel perante a fonte de receitas da Wooga – a empresa acaba de despedir 10% dos trabalhadores