Há uma imagem que guardarei sempre de África: a das mulheres cruzando a imensidão da savana, carregando madeira ou água sobre a cabeça. Muitas fazem quilómetros, todos os dias, para conseguirem esses dois bens essenciais à vida das suas famílias. A lenha é fundamental para cozinhar e aquecer as noites mais frias, e a água é vital para tudo: tanto para beber, como para cozinhar e garantir a higiene diária de todos.
Há um ditado africano que diz que enquanto não tivermos carregado a nossa própria água, não saberemos valorizar cada gota. E é verdade. Talvez por já ter viajado por tantos países pobres me incomode particularmente o desperdício que a maioria, no “primeiro mundo” vê como banal. Habituámo-nos a usar a água como se ela fosse um bem infinito, talvez por não conseguirmos vislumbrar o fundo de um reservatório como sucede diariamente com estas mulheres africanas, milagreiras na arte de multiplicar a utilização de cada gota deste bem tão precioso.
Felizmente, Portugal não se pode equiparar às regiões mais pobres de África, e a escassez de bens essenciais não faz parte das preocupações da maioria de nós. Mas essa realidade, praticamente erradicada no pós-25 de Abril, cresceu de forma galopante nos últimos cinco anos. Hoje existem milhares de famílias portuguesas a viver sem água, mas também sem luz e sem gás, mesmo que seja apenas por alguns dias, algumas semanas ou alguns meses. Já escrevi na VISÃO sobre esta dura realidade que se foi impondo num país sob resgate da Troika e, infelizmente, esse problema não tem ainda solução à vista.
Em 2015, o número de portugueses com cortes de fornecimento por dívidas nas contas de electricidade, água e telecomunicações, aumentou em mais de 50 por cento. Os dados registados no Balcão Nacional de Injunções, do Ministério da Justiça, indicam que a maioria diz respeito a dívidas inferiores a 500 euros, verbas que estas mais de 206 mil famílias não tinham como pagar. Por isso, tiveram de reaprender a viver à luz das velas, a transportar garrafões de água, a suportar banhos frios.
A tudo isto os administradores das empresas destes bens essenciais têm virado a cara – tal como os nossos governantes. Quem não pode pagar a luz, que recupere os velhinhos candeeiros a petróleo. Quem não tem gás, que aprenda a comer “iguarias” cruas e frias. Quem não tem água, que passe a ir à fonte, como sugeriu, em 2014, o secretário-geral da EPAL*, quando questionado por um jornalista sobre as mais de 11 mil pessoas que, só em Lisboa, ficaram nesse ano sem água nas torneiras, por não terem como a pagar.
Estes são bens essenciais não apenas à vida mas à dignidade humana. Não deveria existir uma rede de segurança que acolhesse aqueles que são mais frágeis, que caem fora das malhas seguras da vida em sociedade, quando ficam doentes ou sem trabalho? E não vale falar nas “tarifas sociais” que se criaram, entretanto, para apaziguar consciências. Nas contas da luz, o desconto mensal é apenas de alguns cêntimos. Absolutamente ridículo, para não dizer ofensivo.
Recordo a tristeza que pesava sobre cada palavra de uma mulher que entrevistei, em 2012, uma das muitas pobres que não o são aos olhos do Estado, porque trabalha e tem rendimentos superiores a 500 euros. Uma contabilista que trabalhava pela noite dentro para conseguir cumprir com o pagamento da renda de casa e encher o frigorífico, contando-me como teve de fazer bem as contas e optar onde haveria de cortar. A luz fazia muita falta, até para não quebrar a sensação de normalidade da vida familiar, já abalada por um passado de violência doméstica. O gás ia sendo usado enquanto a bilha comprada no início do mês durava. Quando ficava vazia, era o bico eléctrico que passava a aquecer a água dos banhos. A água era um bem fundamental, até ao dia em que, com três meses acumulados, lhe cortaram também esse serviço. Com a multa para voltar a ligar, tinha mais de 400 euros a pagar. Chorou muito esta mulher, e isso via-se bem nos seus olhos tristes. Mas acabou por encontrar outra solução: esperava pela hora em que os três filhos estavam já a dormir para encher garrafões de água numa bomba de gasolina próxima, rezando para que ninguém a visse. Não sei o que sucedeu com ela entretanto, o contacto de telemóvel que me deu está há muito “fora de serviço” (provavelmente não conseguiu pagar as faturas). Mas penso muitas vezes nesta mulher, simultaneamente frágil e forte, desejando que tenha conseguido ligar-se de novo à vida.
A imagem que tenho desta mãe, enchendo garrafões na bomba de gasolina, não poderia estar mais próxima, e ao mesmo tempo mais distante, da que guardo das mães cruzando a savana. Mas no cenário africano, apesar da vida dura daquela gente, há cor e cânticos de alegria. Na realidade portuguesa há apenas tons negros e lágrimas de vergonha. As lágrimas de quem tem de aprender a sobreviver nesta selva.
* Inicialmente, este comentário era atribuído ao presidente da EPAL, quando foi proferido pelo secretário-geral José Manuel Zenha, em declarações ao Expresso.