Ultimamente, tenho voltado a tropeçar em múltiplas referências, espalhadas e diversificadas, sobre o nosso (português) tão característico conceito de saudade e sobre a valorização dos feitos que realizámos no passado. Não sei porquê, ou seja, não sei se essas referências têm aumentado mesmo ou se, por acaso, têm vindo mais frequentemente ter comigo. Não interessa. Escrevo para dizer que penso que o conceito de saudade que nos persegue tem o mesmo problema do sentido trágico de destino que tanto adoramos. Quer dizer, acho tão atentatório da liberdade endeusar o passado como acreditar que o destino está traçado. Mas gostaria de explicar o porquê retomando uma velha dicotomia filosófica.
Os conceitos de liberdade positiva e negativa foram popularizados por I. Berlin, embora tenha sido Kant – julgo eu – o primeiro a falar neles. Rapidamente, a liberdade negativa existe quando não temos entraves exteriores à nossa acção. Portugal, por exemplo, é um país onde os cidadãos têm muita liberdade negativa, são livres de se reunir, de se expressar (desde que não chamem palhaço ao Presidente da República), de constituir partidos e, claro, de votar. Em contrapartida, a liberdade positiva é uma liberdade que depende do nosso interior. Assim, tendo eu a liberdade negativa de me poder expressar, sou mesmo capaz de dizer o que penso? Por exemplo, sou capaz de discordar do meu partido? Sou capaz de apontar os defeitos da pessoa que amo? Sou capaz de questionar dogmas da minha religião? A liberdade negativa depende da sociedade, das leis; a liberdade positiva depende de nós próprios.
Se levarmos mais longe esta reflexão sobre os conceitos, e se nos concentrarmos na liberdade positiva, podemos pensar que também esta resulta do equilíbrio entre duas tensões dentro de nós: o que nós somos e o que algo ou alguém de outro quer que sejamos. Ou seja, entre o que queremos ou conseguimos ser e o que nos transcende, ou o que é mais forte e independente da nossa vontade.
Quer isto dizer que podem existir dois entraves à nossa afirmação própria, activa e individual (liberdade positiva): o aceitamento passivo do passado ou do futuro. Num caso, estou condenado a repetir o que me ensinaram; no outro, sento-me à espera (a esperança – esse conceito também tão por nós valorizado) do que o futuro reservou para mim. E não tenho consciência de que o futuro depende das minhas acções, nem que o que me ensinaram foi a razão de grande parte dos males que me caem sobre as costas.
O Nietzsche disse (tradução livre) esta frase: «voltarmo-nos para o passado é então desviarmo-nos da vida, fazer triunfar o “instinto do medo” sobre o “instinto da arte”». Dizem-me: O Nietzsche era louco. Mas cito outra sua frase: «e os que começaram a dançar foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música». Retenho a frase inicial porque entendo que opor o «instinto do medo» ao «instinto da arte» é absolutamente grandioso. Por duas razões.
Por um lado, porque a arte é uma arma de que os homens dispõem para ultrapassar os seus limites, a sua pequenez. De modo a criar o novo, o original e, ao mesmo tempo, o eterno. O que significa, realmente, inventar o futuro. Mas, mais importante, devemos ter a consciência de que a arte não é a única arma. Com efeito, está ao nosso dispor inventar uma sociedade nova, esquecendo grande parte do que herdámos. Pensar que chegou a altura de colocar os nossos filhos à frente dos nossos pais, de perceber que a nossa democracia é uma partidocracia, que a meritocracia não existe e que, como consequência, não há justiça social. E que a liberdade, pelo menos a positiva, está muito aquém do que é necessário.
Por outro lado, Nietzsche fala de medo. E eu acho que ele tem razão. Um dos grandes trunfos da «ditadura da cultura» (associada ao passado, à tradição, à religião, aos heróis míticos, etc.) é o medo. O medo do desconhecido, o medo da morte, o medo da diferença, o medo do risco. O que implica medo do futuro.
Eu também sou muito nostálgico às vezes. Aliás, aconselho a música neo-clássica de dois grandes, e jovens, compositores: Max Richter e Jóhann Jóhannsson. Mas só sou nostálgico quando não estou a trabalhar para o país ou a tentar mudar o mundo. Porque, nessas situações, não cedo ao «instinto do medo» e, portanto, não me escondo atrás das calças do pai. Sei que devo lutar para não deixar aos meus filhos um mundo semelhante ao que me deixaram a mim.