O Nobel da Literatura foi atribuído ao Bob Dylan. O que gerou controvérsia. Alguns atacam a decisão, por trazer a literatura para a rua, outros acham-na justa, por trazer a literatura para a rua. E eu perguntei-me: como dar razão a uns ou a outros?
Devo começar por dizer que nunca gostei especialmente do artista em causa, apesar de ter sido um grande adorador da música dos anos 60 e 70. Também devo dizer que não tenho especial respeito pelo prémio em causa, apesar de ser um grande adorador da literatura. Poder-se-ia perguntar qual o interesse então, para mim, de estar a discutir este prémio? É o que vou tentar explicar.
Alfred Nobel é suposto ter morrido arrependido. Aliás, é curioso ter falado dele na minha última crónica, a propósito dos cientistas que estão mais preocupados com as suas descobertas do que com o bem-estar da Humanidade. O arrependimento não resultou da invenção da dinamite ou de tanto se ter dedicado à indústria do armamento, mas antes do facto de ter assistido ao seu próprio obituário, quando o irmão morreu e, confundindo-os, a imprensa francesa ter dito as últimas do inventor. O arrependimento deu-lhe para deixar um legado positivo em forma de prémio para bons cientistas da sua área (física e química), para a medicina (por razões óbvias), para a paz (por razões não menos óbvias) e para a Literatura. Por que razão a literatura? Por causa de a arte ser o mais nobre dos ofícios dos seres humanos? Não me parece. Se assim fosse, ele – ou algum bom conselheiro por ele – escolheria a arte suprema, a música. Por causa de a literatura nos fazer mergulhar num mundo irreal? Não me parece que Nobel se ralasse com mundos irreais. Acho então que criou o prémio da Literatura por achar que, através dela, os autores melhor e de forma mais ampla poderiam comunicar ideias e mensagens que contribuíssem para mudar o mundo, ou seja, para criar um mundo melhor. Poderia ter criado o prémio da Filosofia (tenho pena de tal não ter acontecido). Mas Nobel teve essa pretensão, usando os termos «direcção ideal» para formular a sua ideia quanto ao prémio da Literatura, o que lançou – diz a Wikipédia – a confusão na Academia Sueca, para tentar perceber o que quereria ele dizer. Ora, talvez seja mais simples do que parece: a direcção «ideal» das obras deveria tender para a construção desse mundo novo, também ideal, a Literatura aparecendo aqui como substituto da Filosofia, mas numa dimensão mais próxima do quotidiano dos indivíduos, em livros que qualquer um pudesse comprar, ler e entender.
Não foi este o espírito da Academia Sueca ao longo dos anos. Basta ler os nomes dos laureados. Quantos deles contribuíram para um mundo melhor? Quantos deles eram conhecidos do grande público? Ou sequer conhecidos do grupo restrito das pessoas que lêem e gostam de literatura? Pode dizer-se: eram grandes escritores. Grandes escritores? Só a brincar. Leia-se o nome dos primeiros 20 ou 30 laureados. Quantos deles foram falados, nos meios da especialidade, nos últimos 10 anos? Em contrapartida, por que não foram escolhidos Proust, Joyce ou, sobretudo, Kafka e Borges? Na minha modesta opinião, Beckett poderá ter sido o único vencedor verdadeiramente grande. E se o prémio era para consagrar as grandes ideias, por que houve apenas – que me lembre assim de repente – dois grandes filósofos (Russell e Sartre) a ser escolhidos. Aliás, Sartre recusou precisamente porque quis manter o estatuto de filósofo.
Neste seguimento de ideias, o anúncio de quinta-feira não poderia ser, para mim, mais justo. Como alguém escreveu, é a primeira vez que há um Nobel da Literatura que «todos» já leram. E que contribuiu para a aculturação reflectida de várias gerações quase inteiras. Dylan merece o prémio pela mesma razão que, penso-o agora, sempre me impediu de o ter como referência: colocou a mensagem literária à frente da mensagem musical. Muitas vezes, como em outros «homens da canção», a música servia mais para embelezar a letra do que outra coisa. Ele foi sobretudo um escritor. Foi buscar o pseudónimo a um poeta de romantismo arrebatador e quis ajudar as gerações suas contemporâneas, e outras depois, a compreender o mundo em mudança.
Estou convencido de que as pessoas que lhe criticaram a nomeação muito gostariam de ter recebido o prémio. Ele, pelos vistos, está-se «nas tintas»; longe do mundanismo de um prémio que, na Literatura como na Paz, terá cometido erros demasiado escandalosos. O que certamente não aconteceu agora.