Poucos dias depois da morte de Moniz Pereira, a quem todos chamaram “o senhor atletismo” mas a quem Portugal não me parece que tenha prestado homenagem suficiente, eis que começam os Jogos Olímpicos. E eu sinto-me entusiasmado. Porque é a competição desportiva que eu mais gosto de ver. E a razão é simples: é por causa do atletismo. Gosto de ver a ginástica, a natação e outras modalidades olímpicas, mas é o atletismo que me cola à televisão.
Estive hoje meio nostálgico, a recordar esta minha paixão pelo atletismo – que nunca pratiquei, nem de perto – e as idas ao Estádio Universitário ver as provas nacionais com o meu padrinho – Henrique Rebelo de seu nome, ilustre praticante de remo e de râguebi –, há cerca de 50 anos. Na altura, conhecia os nomes todos, hoje já não os recordo. A não ser um, que me veio instintivamente à memória: Barceló de Carvalho. Era o rei das provas curtas, talvez 100, 200 ou 400 metros. E, de repente, perguntei-me: será que esta Internet, sempre à procura das notícias e das informações mais frescas, ainda guarda a memória deste homem? Será que ainda vive?
Fui ao Google e escrevi o seu nome. Até com um certo receio de ter feito alguma confusão. Que encontrei? Sim, tinha razão: existiu; foi campeão de 100, 200 e 400 metros; sete vezes campeão de Portugal; e foi, antes, várias vezes campeão de Angola. Mas o mais incrível foi perceber que estava vivíssimo e, contra todas as minhas expectativas, era uma pessoa muito conhecida do povo português. Mas não como atleta. É o popular músico «Bonga». Fiquei incrédulo. Há coisas extraordinárias. Como é possível que a imagem do músico, pessoa que provavelmente conheceria na rua, seja a mesma daquela que recordo tão bem de um atleta grande e forte, que corria muito direito, com os ombros e a cabeça levemente para trás, e tinha – ia jurar – uma barbichinha pequena no queixo?
Nós somos bons no atletismo, temos grandes vitórias no passado, bem maiores do que as do futebol. Mas não há suficiente memória desses feitos, nem mesmo por parte dos «etnomaníacos» (neologismo absolutamente brilhante do F. Savater). Mas não é certamente por causa dessa injustiça que escrevo esta crónica. É por uma outra razão: a sensação que mais me impressiona quando vejo atletismo é a da solidão do indivíduo humano perante a confrontação com o seu excesso. É algo que não acontece apenas com o atletismo. Com as outras modalidades grandes das Olimpíadas – natação e ginástica – passa-se um pouco o mesmo. Vou tentar explicar o que é que isto significa para mim.
Em primeiro lugar, fascina-me a calma, a concentração e o recolhimento que vejo nessa solidão. Em vez de um jogo de equipa – que é um pouco como os trabalhos de grupo no liceu, em que há um ou dois que fazem e os outros ajudam ou assobiam para o lado –, há nesta solidão uma identificação intensa da individualidade humana, essência, para mim, de toda a humanidade.
Em segundo lugar, e tal como acontece na arte, temos um indivíduo só que se confronta com a sua própria transfiguração, com o chamamento do Absoluto, com aquilo que de mais profundo o excede. E, para um não crente, é essa transposição de mundos que transforma um homem num deus. Como nunca um conjunto de homens se poderia transformar num Olimpo. Porque essa passagem é um resultado impossível de se produzir a não ser por via de uma vontade individual, interior, única.
Em certa medida, é essa unicidade da individualidade humana que me fascina, sobretudo quando excede o máximo que lhe é comum. E se instala num limite de infinitude. Como escreveu o Vergílio Ferreira, «só o que é de mais é que é bastante». Ou «sim, eu sei, quero o impossível; mas só o impossível é que vale a pena.»
Afinal, Barceló de Carvalho tinha razão: o atletismo e a arte são fruto do mesmo tipo de homens.