Já há algum tempo que o país não se mostrava tão dividido. O problema dos subsídios estatais às escolas privadas veio acender questões ideológicas que se encontravam em banho-maria. Direita contra esquerda? Vejamos.
Vivemos a era da desmitificação. Por exemplo, não há semana em que não haja um questionar dos mitos a propósito das dietas alimentares. E muito bem. A culpa não é da desmistificação com propósitos científicos, é dos mitos ocasionais e infundados que se criaram. Um dos mitos que se criou foi este: a defesa dos «direitos adquiridos» é coisa de esquerda. Na linha CGTP. Pelos vistos, não é assim. A direita só não contesta os direitos adquiridos quando não lhe convém.
Vamos começar então pelo direito adquirido. No início, as escolas públicas rebentavam pelas costuras e não tinham espaço para todos. O Estado, bem ou mal – agora não interessa –, decidiu financiar privados para colmatar as falhas públicas. Teoricamente, a lógica era o Estado só recorrer aos privados se precisasse (não estou a falar da lei que se criou, mas da lei que se devia ter criado). Se não precisasse, não recorria. Qual a reacção lógica e «liberal» da iniciativa privada? Muito simples: alinhava na proposta, com o risco inerente, ou recusava. Avaliava o risco, como é normal num espírito empresarial, e decidia. Porventura, fazia investimentos elevados. Correndo riscos intensos (por exemplo, o despedimento de contratados se o contrato de financiamento não fosse renovado). Se agisse com racionalidade empresarial, poderia pedir ao Estado um contrato com uma duração mínima para amortizar esses investimentos. Se tudo se tivesse passado assim, não haveria problemas: findo o período de contrato, o Estado podia recuar e retirar o financiamento. E se as empresas privadas do país não dependessem terrivelmente do Estado, contrariamente ao que apregoam, não haveria relevância na questão. Agora, se algum governante contratou mais do que isto, oferecendo garantias que não devia e colocando na lei o que não era o «espírito» da lei, devia ser responsabilizado, penalizado, punido, e o Estado devia responder por isso.
Quero com isto dizer que o Estado deve cumprir os seus compromissos. É uma questão legal e não educativa. O problema é quando o privado quer continuar a usufruir dos financiamentos mesmo que o Estado não queira e mesmo que este honre os seus compromissos até ao fim dos contratos. E quando quer fazê-lo em defesa de um melhor ensino, ou seja, defendendo que a escola privada é melhor e que quem paga impostos deve poder escolher o melhor para os seus filhos. E aí, tal como escreveu o Paulo Chitas há uma semana ou duas, atingimos o verdadeiro problema: o Estado não precisa apenas de ter escolas ou hospitais abertos. É também necessário que sejam de qualidade. Para não ser acusado de ter escolas ou hospitais que não prestam, ou que não têm a segurança dos privados que estão ao lado. O Estado não pode permitir que os contribuintes digam que têm medo de colocar os filhos nas escolas públicas ou de ser internados em hospitais públicos. Porque perde toda a razão. Se os pais optarem por escolas privadas para se armarem em finos, ou para os filhos terem piscinas, que paguem. Mas, nas escolas públicas, não podem existir professores faltosos ou incapazes. Os contribuintes devem sentir qualidade no sector público.
Enfim, não vale a pena começar com guerras ideológicas. Entre os que barafustam a favor dos direitos adquiridos do privado, usando o desajuste das cores do Vaticano e a infâmia do aproveitamento das crianças, e os que defendem os direitos adquiridos do sector público, em tons de vermelho, protegendo os funcionários públicos de uma avaliação objectiva e do despedimento natural em caso de incompetência. Porque no meio desse sarrabulho, a verdadeira questão da Educação em Portugal, bem visível na miséria dos nossos indicadores à escala europeia, fica mais uma vez adiada. O que é preciso é avaliar, de forma objectiva, a qualidade do ensino. Público e privado. E o Estado Social que prezamos deve ser capaz de assegurar, de forma generalizada, um ensino público capaz. E quem quiser mais (com piscina incluída, por ex.) ou diferente (com ensino religioso, por ex.), deve pagar. A Educação das nossas crianças é importante de mais para ser usada em guerrilha ideológica própria dos meados do século XX. A solução é o Estado retirar os direitos adquiridos aos trabalhadores que não merecem e fazer com que todos os seus serviços públicos sejam de qualidade. De modo a que pais e doentes não se vejam obrigados a recorrer ao privado. O erro é, qualquer que seja a perspectiva ideológica, o direito adquirido. E a solução é a meritocracia.
É escusado irem procurar esta palavra no dicionário de português. Não consta.