Foi assim, a minha vida.
Sou Mário, nasci na Guiné, em 1981. O meu país nunca foi rico e eu sempre fui pobre. Conheci a minha mãe mas nunca vi o meu pai. Fui dado à luz no hospital da capital, Bissau. A minha mãe conseguiu ir arranjando dinheiro para me manter na escola e segui estudando até ao 11º ano. Tive 14 a Português e 16 a Biologia no final do Liceu. Queria irpara a universidade, Medicina era o que me interessava. Mas a minha mãe morreu e fiquei sem dinheiro para continuar.
Parti aos 22 anos. Falei ao telefone com um amigo que trabalhava numa pedreira de Almeria, no sul de Espanha, e disse-lhe que ia também tentar a sorte. Tinha 60 mil francos FCA, o equivalente a 95 euros, uma fortuna para mim. Uma mochila e um passaporte eram os meus outros bens. E este tronco, estas pernas, estes braços fortes.
Gastei os meus primeiros 10 euros na viagem até ao Senegal. Éramos sete na carrinha de aluguer e o preço incluía as refeições durante os dois dias até Dacar. Se seguisse para norte tinha de atravessar a Mauritânia, esse país onde os pretos como eu são por vezes escravizados como empregados domésticos. Evitei. Segui para o Mali. Apanhei o comboio entre Dacar e Bamaco, mais dois dias de viagem, 30 mil francos guineenses, metade do dinheiro que tinha quando parti. O preço não incluía alimentação. O meu dinheiro terminou rápido.
Fiquei numa aldeia do Mali e ali encontrei Mamadou, que também veio da Guiné. E Samba. Com eles, ao fim de vários dias, voltei a falar em crioulo. Estivemos juntos durante oito meses, a lavar pratos num restaurante. Foi assim que juntámos 175 euros para pagar à máfia maliana uma viagem até à Líbia de Kadhafi, passando pela Argélia.
A máfia não mente. “Se morreres, perdes tudo, se não é muito bom”. Eles tratam as reclamações com armas. Subimos 25 para um jipe sem capota. Havia os que ficavam em “baixo” e os que ficavam em “cima”. Eu e o Mamadou viajámos em cima mas o Samba seguiu em baixo. Eles podem morrer com o calor ou com o peso dos nossos corpos. Nós vemos os cadáveres dos que tentaram antes de nós a secar ao sol, durante a viagem pelas montanhas e pelas dunas.
Perto de Djanet apareceu a polícia argelina. O jipe capotou. Eu e o Mamadou fomos lançados à primeira reviravolta. Bati com o peito numa pedra – anos passados, ainda me dói. O Samba, que ia em baixo, morreu, juntamente com três camaroneses e um nigeriano. A polícia levou os vivos e deixou os mortos.
Ficámos 61 dias na prisão de Djanet, eu e o Mamadou. Daí fomos transferidos para Tamanrasset onde ficámos mais 40 dias. Depois levaram-nos de volta para o deserto do Mali , sem dinheiro, água ou roupa. Chegámos a Kidal – tinhamos recuado mais de 700 quilometros.
Dois meses a pilar milho e a lavar roupa, a juntar dinheiro para uma nova viagem. E depois mais uma etapa com passaporte falso do Mali até Adrar. Aqui fiquei com Mamadou mais dois meses, a trabalhar como pedreiro. E depois fomos para Maghnia, já perto da fronteira de Marrocos. E de Melilla.
Em Maghnia havia duas cidades: a dos árabes e a dos negros. Esta última é uma espécie de vala, numa cova, o que a mantém a salvo dos olhares curiosos. Tem polícia, igrejas, mercearias e até um campo de futebol. Ali manda Buba, um nigeriano. Ele controla o “governo dos camaradas”, recebe dinheiro por cada travessia para Melilla e serve-se das raras mulheres que chegam ao acampamento. Mamadou e eu trabalhávamos na monda de piripiri de dia e dormíamos na cidade dos negros, à noite. Ficámos lá 27 dias e depois demos o salto para Melilla.
Saltei a rede de seis metros. Um companheiro do Mali caiu-me em cima e o peito doeu-me muito. Gritei tanto que a polícia me levou para o hospital. Mamadou, que foi apanhado pelo exército marroquino a dormir do outro lado da rede, só deu o salto 10 dias mais tarde.
Agora estou à espera da radiografia ao peito. Em breve conhecerei o meu advogado oficioso. Ninguém me para. Quero uma oportunidade. Antes morrer no deserto do que ficar sem esperança.
PS. Este relato da viagem de um emigrante guineense até Melilla é inspirado num artigo de João Dias Miguel, publicada na VISÃO em 13 de outubro de 2005.