A Antropologia contém uma área de investigação que se mantém da maior actualidade, à qual chamarei, para facilitar, hominização. Há anos e anos que ela nos obriga ao esforço de compreender como se criou o homem e de pensar no que nos distingue dos animais, ultrapassando as questões técnicas da ciência em causa – ou mesmo de todas as ciências – e passeando-nos pela filosofia e pela arte, na direcção de uma reflexão geral sobre a humanidade.
Apesar de sermos homens há centenas de milhares de anos, tenho a ideia de que a humanidade não se cumpriu. E vou jogar com alguns conceitos para me explicar.
São múltiplas as características que podemos enunciar como sendo mais ou menos específicas dos homens, face aos animais. Mas há uma que poderia ser decisiva, e não é. Refiro-me à capacidade de o homem ter uma visão global, macro (não queria dizer “holística”), da vida no planeta Terra. Que quero dizer com isto? Os animais vivem normalmente em comunidades limitadas no espaço e em função dessa pequenez de horizontes. Do mesmo modo, os primeiros homens organizaram-se em pequenas comunidades isoladas. E, por causa dessa origem, criaram culturas de tipo tribal – com mitos fundadores, religiões, ritos e regras que se destinavam à sobrevivência desses grupos – completamente dependentes das suas condições particulares de criação e totalmente limitadas em horizontes físicos e mentais, logo muito diversas das culturas de outras regiões, sobretudo as mais distantes. Houve depois um alargamento progressivo, criando-se as nações e os nacionalismos (baseados numa identidade cultural nacional). Quando existiu, no passado mais remoto, um esforço de globalização cultural (misturado com sede de conquista e de poder, sobretudo económico), foi através da inutilidade da imposição, da guerra, do massacre e da escravização. Resumindo, não se realizou uma verdadeira tentativa de globalização cultural, pertencente a uma comunidade humana de dimensão total, planetária, tendo a Humanidade (agora com maiúscula) ficado prisioneira daquilo a que já aqui chamei a “filosofia dos mundozinhos”, não conseguindo pensar o mundo para além da limitação de horizontes original.
No pós-título desta crónica, recordo por graça uma frase genial do arquitecto inglês Cedric Price (1934-2003). E faço-o porque ela ilustra bem o mundo em que vivemos. É que alguém poderia questionar-me: “quer mais globalização do que a que existe hoje?”. E a minha resposta é triste: a globalização de todos estes últimos anos incidiu no que era exterior ao homem, como é o caso da tecnologia, e não no que constitui a essência do seu ser, ou seja, as coisas em que acredita, os valores que formam a sua identidade. A própria informação, que se globalizou também, não serviu para criar um conhecimento que tenha permitido cumprir esse desígnio de integração cultural total.
Sinto, assim, que os seres humanos não se salvarão de um fim que se aproxima com rapidez. E não se salvarão porque à hominização não se seguiu um processo de humanização, quero com isto significar a tal criação de uma cultura única para a comunidade humana, à escala planetária, uma construção cultural global que pudesse assegurar a protecção conjunta de todos os homens. Contrariamente ao animal, o homem poderia aspirar a essa dimensão mental para salvação do planeta. Em contrapartida, andam tribos/nações em guerra umas com as outras, por causa de existirem mil deuses diferentes ou mil variantes do mesmo deus, por causa de haver mil nacionalismos a defender (que incluem diversidades de mil línguas, de mil heróis diferentes, de mil passados de guerra tradicional entre vizinhos, de mil histórias de glorificação, de mil hábitos e costumes…) e, é claro, por a ganância ser sempre a mesma. É como se os órgãos do nosso corpo andassem todos à bulha uns com os outros em vez de se entreajudarem.
Atrevo-me a retomar um exemplo muito actual, do qual já falei na anterior crónica que referi: uma das principais razões que explicam a destruição iminente do planeta é o excesso populacional e o excesso de crescimento, ou seja, de nascimentos. Mas os loucos países europeus (e outros similares) andam preocupadíssimos com o declínio da natalidade. Nomeiam comissões e atribuem ao assunto prioridades nacionais. Porquê? Porque isso do excesso de crescimento e de nascimentos é lá em África e na Ásia. E se mandarmos vir as crianças que vivem em condições miseráveis nesses países (ou morrem à fome) ainda acabamos por ter uma Europa com pessoas demasiado diferentes de nós.
É como a desflorestação da Amazónia: não quero saber, isso é lá no Brasil!