A imagem do rosto dela aparece na pesquisa do Google.
– É a Malala – explica a irmã mais velha. – Está a lutar no seu país para que as meninas possam ir à escola.
A outra:
– Eu sei. Só que não me lembrava do nome dela.
Alegro-me. É um sinal de que não estou a falhar assim tanto como pai. A mensagem da rapariga paquistanesa, agora com 18 anos, chegou há uns três anos a nossa casa. Ela tornara-se célebre, depois de ter sido vítima dos talibãs, fazendo contundentes apelos à paz e à educação das raparigas no mundo islâmico. O Nobel da Paz e o Sakharov, vieram a seguir.
Simpatizei desde o início com Malala Yousafzai e com a sua causa, apesar de o seu discurso me ter parecido confrangedoramente ingénuo. O que havia de esperar de uma miúda de 15 anos?
Este domingo acordei, com uma Europa novamente em polvorosa e com a conversa das minhas filhas recordei-a dizer qualquer coisa como “uma bala pode matar um terrorista, mas educação erradica o terrorismo”.
Não posso deixar de comparar as suas palavras, aparentemente pueris, com as doutas opiniões da maioria dos comentadores de que bastaria despejar bombas sobre os redutos do Estado Islâmico na Síria e no Iraque para o problema se resolver. A paranóia securitária e belicista agudiza-se e os mercados bolsitas agradecem, empurrando as cotações das indústrias de armamento para a alta, como aconteceu logo a seguir à declaração de guerra de François Hollande.
Malala consegue ser mais radical que os estrategos, comentadores e políticos, que tenho ouvido nestes dias, mesmo os que advogam que a guerra contra o Estado Islâmico não se ganhará sem “botas no terreno”. O que ela sugere é que se corte o mal pela raiz.
Não é nenhum segredo que as monarquias petrolíferas do Golfo Pérsico são, há anos, os motores do financiamento da jihad à escala global. Mas mais do que financiadores, são o berço ideológico do jihadismo, em particular a Arábia Saudita (até porque a dependência do autoproclamado Estado Islâmico em relação aos donativos é diminuta – ver aqui).
Malala é mais radical, talvez porque a maioria dos estrategos, comentadores e elites ocidentais nunca viram um campo de batalha a não ser pela televisão. Ela, pelo contrário, passou praticamente toda a vida na difusa linha da frente da chamada guerra contra o terrorismo. E não morreu por pouco. Ainda hoje, exilada, tem de se rodear de medidas de segurança.
O Ocidente e os seus dirigentes estão dispostos a lançar o mundo numa nova guerra que pode deslocar-se do Iraque e da Síria, perpetuando-se noutros palcos. E nós, nunca mais nos sentiremos em segurança na nossa zona de civilizado conforto, se as coisas não forem abordadas a partir da sua origem.
E a origem do problema não está no Iraque nem na Síria. Está na Arábia Saudita, onde a base ideológica do jihadismo, a versão wahhabita do Islão é a religião de Estado. Trata-se de uma doutrina do século XVIII, criada por Mohammed ibn Adb-al-Wahhab (1703-1792) e tida como uma das correntes mais ortodoxas e extremistas do islamismo sunita. O wahhabismo não admite outra fé – nem dentro do próprio Islão sunita. Quem professa outra doutrina é tido como infiel e inimigo.
O grande impulso do wahhabismo no mundo islâmico (e não só) começou na década de setenta do século passado, quando a Arábia Saudita se tornou uma peça fundamental para a política externa do Ocidente, em particular dos EUA, no Médio Oriente. Riade foi uma preciosa aliada contra a influência soviética na região e o Egito de Nasser. Depois, contra a revolução xiíta iraniana. A seguir, veio a ocupação soviética do Afeganistão, onde os sauditas foram também preciosos aliados do Ocidente no apoio militar, financeiro e ideológico precisamente aos mesmos grupos que o mesmíssimo Ocidente combate agora para os lados do Hind Kush. A Arábia Saudita foi também aliada na Guerra dos Balcãs às forças bósnias-muçulmanas, incluindo os “voluntários” estrangeiros que aí combateram. A Arábia Saudita “ajudou” igualmente na reconstrução estendendo a sua influência à Europa Muçulmana, Bósnia, Albânia e Kosovo.
Com o seu petróleo, a Arábia Saudita exportou e ainda exporta para todo o mundo a sua peculiar e extremista forma de Islão, através de uma ofensiva cultural encabeçada pela Liga Mundial Muçulmana e pelo seu Ministério da Religião, que imprime e distribui versões wahhabitas do Corão e outros textos doutrinários pelas comunidades islâmicas de todo o mundo, Europa ocidental e Estados Unidos incluídos.
Em todos estes sítios, de Amã, a Kuala Lumpur, passando por Jacarta e Sarajevo, até Londres, Munique e Nova Iorque, os sauditas financiaram mesquitas com imãs wahhabitas, criaram escolas corânicas (madrassas), obviamente, com curricula wahhabitas.
Não há almoços grátis, dizia o outro. Assim, para o seu apoio, os sauditas exigiram e obtiveram em troca uma prática religiosa em conformidade com a sua religião de Estado – isto é a rejeição de todas as outras formas de Islão, à sua visão sectária e intolerante do Mundo.
É essa a visão que é ensinada nas escolas oficiais sauditas, onde no ensino preparatório e secundário, 35% das horas letivas são ocupadas com a religião. O sistema de ensino saudita, que exporta os seus imãs para todo o mundo, fomenta a intolerância e o ódio.
Ainda na ressaca do 11 de Setembro e das guerras do Afeganistão e Iraque, o centro para a liberdade religiosa da ONG norte-americana Freedom House (Casa da Liberdade) publicou um relatório em que analisou os manuais escolares do Ministério da Educação sauditas para os ensinos básico e secundário, usados no país e em escolas no exterior, financiadas pelo reino.
Intitulado O Currículo Saudita da Intolerância, esse estudo concluiu que os manuais promovem «uma ideologia de ódio face a pessoas de outras crenças, incluindo muçulmanos» que não professem o wahhabismo.
São livros escolares em cujos textos podemos encontrar semelhanças com os que durante o Terceiro Reich eram lidos pelas crianças e jovens da Juventude Hitleriana. Neles encontramos o incitamento ao ódio e à intolerância no próprio seio familiar. Como se pode ler na quarta lição de um manual para o quinto ano, intitulado Monoteísmo, Hadith, Jurisprudência e Recitação Corânica:
“Não é permitido ser-se amigo leal de quem se oponha a Deus e ao seu profeta. (…) Quem obedeça ao profeta e aceite a unicidade de Deus não pode ser leal para com quem se oponha a Deus e ao seu profeta, mesmo que estes sejam os parentes mais próximos.” (Seguindo este link pode visualizar alguns excertos em inglês, retirados do relatório da Freedom House).
Isto é ensinado, em 25 mil escolas oficiais sauditas, a cinco milhões de crianças e jovens do país, a partir de livros exportados para todo o mundo que são a base de ensino nas madrassas financiadas pelo regime saudita – o mesmo que é apaparicado pelo Ocidente e que, ainda há dias, condenou à morte um poeta palestiniano por ter tido a ousadia de renunciar ao Islão.
Posto isto, a muçulmana Malala só pode ter razão: a educação pode fazer mais contra o terrorismo pretensamente islâmico do que as bombas.