Manhã cedo, fui apresentar condolências à vizinha. O marido acabara de falecer e ninguém a escutou chorar, ninguém a viu na igreja moendo joelhos e pecados. A vizinha fazia o luto, tal como fizera o viver: sem que ninguém se apercebesse que existia.
Sabia-se dela quando, para além das paredes, escutávamos o marido que a espancava e nunca ninguém no bairro se deu ao incómodo de intervir. Eram marido e mulher. Apenas Deus tem competência nesses domésticos assuntos. Acudir seria, além disso, um imperdoável desrespeito para com o dono da casa. Mil vezes me deu vontade de arrombar a porta dos vizinhos. Todas as vezes me acovardei e disso me arrependia. Olhei as duas casas, a minha e a da vizinha e vi, pela primeira vez, as paredes como irmãs siamesas. Quase não havia distância a separarmo-nos. Como não haviam de ressoar dentro de mim os gritos de socorro da vizinha?