Ouvi um ruído na fechadura da porta. Fui até lá a correr, enfim quase a correr porque tenho a minha dignidade, abri a porta, antes de a alcançar o ruído cessou e não eras tu. Espreitei o patamar, espreitei as escadas e não só não eras tu como não era ninguém, tudo vazio, degraus abaixo, até à rua, estamos em agosto e o prédio inteiro de férias menos eu que continuo à tua espera porque hás-de vir, talvez hoje, talvez amanhã, talvez daqui a um ano mas hás-de
(ninguém me tira isto da cabeça)
vir. E, para tua informação, vais encontrar-me assim que chegues, não zangado contigo
(porquê zangado contigo?)
a tratar-te pelo nome
– Elisabete
a tratar-te por amor, o
– Amor
que me apeteceu dizer-te no momento em que o Alfredo te apresentou
– Ainda somos primos
e eu logo quase tonto, eu logo com um aperto na goela, de pernas a fraquejarem diante do teu sorriso, eu de imediato, que estranho, a, em lugar de
– Muito prazer
a segurar a custo o
– Amor
que tentava sair-me pela boca fora, Elisabete, e dissolver-se nos teus lábios, nos teus dentinhos da frente
(um bocadinho separados o que te dava mais graça ainda)
no sinal da tua bochecha esquerda, na cicatrizita da sobrancelha, para não me alongar muito no teu rosto inteiro, querida, no teu rosto inteiro, enquanto os teus braços quase se me enrolavam no pescoço e quase murmurarias
– Sim, meu ursinho
num sopro de gaze que me transtornou o sistema e fez saltar todos os fusíveis do meu corpo de modo que fumo nas orelhas, fumo no nariz, fumo em todos os poros da pele, o Alfredo, intrigado
– O que se passa contigo?
e sei lá o que passa comigo, só não quero que te vás embora, Elisabete, só quero que me dês a mão, só quero que me segredes
– Artur
só quero que a gente os dois para sempre, a tua camisa de dormir ao lado do meu pijama, a tua roupa no meu armário, tu para os teus pais, estou certo disso
– O meu Artur
a tua mãe a avaliar-me, estou certo disso
– Não me pareces teres escolhido mal, filha
o teu pai, estou certo disso
– Dá-me ideia que bom rapaz
e claro que eu bom rapaz, bom rapaz, bom rapaz, eu uma joia de rapaz, eu um rapaz do caraças, senhor, desculpe o plebeísmo, que vai transformar a sua filha na mais adorada das princesas, que vai fazer da sua filha a rapariga mais feliz do quarteirão, vivo num T1 só meu e já pago, trabalho num stand de automóveis, a minha madrinha, que me criou, uma santa, ao conhecerem-na vão ver que gostam dela, é impossível não se gostar dela, tão boa, tão doce, tão gorda, ninguém ultrapassa, em alegria e bondade, uma senhora gorda, tu para mim, com uma expressão talvez ligeiramente intrigada
– Como disse que se chamava?
desiludindo-me um pouquinho com o
– Você
mas qual a importância, com um você posso eu bem, com mil
– Vocês
posso eu bem desde que não te afastes de mim, convidei-vos a entrar, a ti e ao Alfredo, ofereci-vos um copo da jeropiga da minha mãe, obriguei-vos a sentarem-se, ao Alfredo na poltrona e tu comigo no sofá, segurei a tua mão que parecia fugir-me, encostei o joelho ao teu que se afastou de mim mas que há-de vir, eu sei, que há-de vir, há-de vir e ficar comprimindo-me a coxa, o Alfredo elogiou a jeropiga da minha mãe estendendo o copo vazio a pedir outra dose
– Bela pomada
enquanto a tua mão me fugia a pretexto de coçar um cotovelo e acabou por poisar no ombro do Alfredo o que não admira, um primo, apesar de afastado, continua a ser primo e quem não é adepto da união das famílias, a célula base da sociedade como salientou o senhor primeiro ministro antes de mencionar que este país não passa de uma enorme família, a gigantesca célula base que apoia o governo da mesma forma que o ombro do Alfredo apoia a mão da Elisabete que me pediu uma gotinha
– Uma gotinha só, veja lá
acrescentando à frase um
– Senhor Artur
odioso, foram-se embora, agarrados um ao outro, umas duas horas depois numa ternura fraternal de célula base que eu não podia deixar de aprovar ou mesmo mais que aprovar, regozijar-me com ela, quem não apoia o progresso de Portugal, quem não gosta de fomentar os sentimentos nobres, antes de saírem fui à gaveta da cómoda buscar uma réplica da chave da entrada e entreguei-a à Elisabete
– Aqui tens o passaporte para o teu novo ninho, amor
e cá estou à tua espera desde há dois meses e meio, quais dois meses e meio, cinco meses em setembro, sabendo que virás, de dentinhos da frente um bocadinho separados, vestida de noiva, claro, e com um ramo na mão, ainda que o Alfredo garanta que não são bem primos, ainda que o Alfredo garanta
– Encontrei-a essa noite num bar e depois de pagar o quarto não tornei a vê-la
ainda que o Alfredo garanta
– Sempre hás-de ser parvo
cá estou à tua espera, de casaco e gravata, com a garrafa e dois copos de jeropiga num tabuleiro, com os fusíveis do meu corpo todo a saltarem um a um de amor eterno por ti.