A campanha de uma eleição para Presidente da República tem sempre um pequeno problema: como poderão os candidatos apresentar propostas que não se confundam com aquelas que apenas competem ao poder executivo? Na nossa Constituição, um Presidente não governa. E, muitas vezes, as qualificações valorizadas num candidato não se coadunam – pelo menos, diretamente – com a função que exercerá, em Belém. Por exemplo: Cavaco Silva era elogiado pelas suas capacidades técnicas na área das Finanças Públicas – mas não foi por isso que, durante o seu consulado, o País não chegou à bancarrota. Lá está, Cavaco não metia prego nem estopa na política económico-financeira do governo. Durante a campanha de 2006, porém, o ex-primeiro-ministro, que havia conduzido o País durante dez anos seguindo um estilo muito pouco dado ao diálogo com a oposição (o mesmo não se pode dizer relativamente a outras entidades da sociedade civil, como patrões e sindicatos, tendo obtido vários bons acordos de concertação social…) encontrou uma fórmula que encaixava perfeitamente no perfil presidencial: a ideia da “cooperação estratégica” com o governo. O candidato do centro-direita sabia que ia defrontar-se com um executivo socialista e um primeiro-ministro forte (José Sócrates), tinha a noção de que a sociologia política do País estava inclinada ao centro-esquerda e fez aquilo que os grandes candidatos sempre conseguem: encontrar uma ideia e estabelecer um desígnio que se adaptasse aos tempos.
Com a “cooperação estratégica”, Cavaco procurava limar as arestas de uma imagem de pouca capacidade para o diálogo, ao mesmo tempo que, implicitamente, prometia colaborar com o governo, para o bem do País. Colocando as coisas em contexto, recorde-se que, nesse tempo, o professor de Finanças tinha escrito, ainda durante a campanha para as legislativas de 2005 (um ano antes das presidenciais) o famoso artigo da “boa e má moeda”, que arrasava, implicitamente, a governação e a liderança de Santana Lopes, e até tinha mandado retirar a sua fotografia de cartazes em que o então líder do PSD se associava ao antigo chefe de governo. Da mesma forma, não se cansava de elogiar o “ímpeto reformista” do primeiro-ministro Sócrates…
Antes de Cavaco Silva, também Mário Soares tinha desencantado da cartola um coelho que haveria de fazer escola até aos nossos dias: a ideia da “magistratura de influência”. Com esta designação, Soares pretendia dizer que, embora não governe, o PR tem a capacidade de influenciar as políticas públicas e o rumo do País. Tanto a “magistratura de influência” como a “cooperação estratégica” são conceitos suficientemente vagos para poderem ser usados como atribuições de um Presidente que não tem poder executivo e suficientemente mobilizadores para levarem o eleitor a acreditar na sua utilidade. Com este mesmo propósito, Marcelo Rebelo de Sousa prometeu, na sua primeira campanha, a “descrispação” da sociedade portuguesa, o que, num tempo muito polarizado como foi o da Troika, fazia todo o sentido, como desígnio presidencial. O problema de Marcelo foi o de ter esgotado esse desiderato logo no primeiro mandato, sem encontrar objetivo alternativo para o segundo – com o resultado de vir a deixar Belém com uma galeria de selfies como recordação, mas com a sociedade ainda mais polarizada do que aquela que encontrou.
Ao olharmos para os debates que têm mobilizado as atenções gerais do país político, encontramos, em todos os candidatos, uma enorme dificuldade em estabelecerem um desígnio, um conceito, um objetivo ou uma ideia que possa definir um mandato presidencial. Em alternativa – e, também, condicionados pela moderação dos debates –, acabam por repetir a discussão sobre os estafados temas que ocuparam duas eleições legislativas em dois anos consecutivos: é o take 3 da crise na habitação, do estado do Serviço Nacional de Saúde ou do “problema” da imigração. A falta de imaginação dos candidatos, de todos os candidatos, é gritante. Mas, mesmo assim, podemos descortinar em dois deles um pouco mais do que nos outros, alguma noção do que é a área de intervenção de um Presidente da República. Quer queiramos, quer não, vamos sempre bater na tecla da experiência política: isso mesmo, são eles Luís Marques Mendes e António José Seguro.
Marques Mendes promete colocar um jovem no Conselho de Estado. E para que é que isso serve? Já definiu um perfil? Jovem até que idade? Estudante, trabalhador,ou trabalhador-estudante? Pobre, remediado ou abastado? Homemou mulher? Com estudos universitários ou com o 9º ano? A primeira proposta de Marques Mendes é uma… generalidade
Mas enquanto Seguro encara os poderes presidenciais de uma forma tradicional, na linha do estilo arbitral, contido, discreto e apaziguador, congregador de vontades (algo fora de moda e, talvez, manifestamente lírico ou insuficiente…), Marques Mendes, além de prosseguir os mesmos objetivos, quer ir mais além. Por isso, no debate com Seguro, disse, várias vezes, que será mais interveniente, com “propostas concretas” e, recuperando uma crítica de Augusto Santos Silva a Seguro, “não com generalidades”.
Vale a pena analisar as três propostas concretas que Marques Mendes apresenta. Primeira: Colocar um jovem no Conselho de Estado. E para que é que isso serve? Que tipo de jovem? Já definiu um perfil? Jovem até que idade? Estudante, trabalhador, ou trabalhador-estudante? Pobre, remediado ou abastado? Homem ou mulher? Com estudos universitários ou com o 9º ano? A primeira proposta de Marques Mendes é uma… generalidade. E é difícil não suspeitar que se destina apenas a “endrominar” um eleitorado jovem que sente fugir-lhe.
Segunda: Consagrar a primeira reunião do Conselho de Estado à reforma urgente da Justiça. Mas como? O Conselho de Estado tem poder executivo ou é – como o nome indica – um órgão de aconselhamento do Presidente? Juntar que vontades para essa reforma? As do PSD e do PS? Mas essas contas ainda podem fazer-se assim, com o Chega como segunda força política? Ou inclui o Chega? O que vai sair dali? O apelo a que se faça um pacto de regime? Outra vez?! Segunda generalidade.
Terceira: Mesmo que o Chega vier a vencer eleições, só indigita André Ventura primeiro-ministro perante um documento escrito em que o futuro chefe do governo se comprometa a não incluir medidas “anticonstitucionais” no programa do governo. E se fizer (citando Luís Montenegro) um programa todo “pipi” e, depois, produzir diplomas e decretos ou propostas de leis que chocam com a Constituição? Aliás, para que precisa o PR desse documento se ele está lá, precisamente, para cumprir e fazer cumprir a Constituição? O Governo forma-se, sem papel nenhum, e, de cada vez que aparece um atropelo à Constituição, ele garante que não passará por Belém! Não precisa de documento nenhum! Faz parte do seu trabalho! Ou Marques Mendes quer aliviar a carga de trabalho? A terceira proposta concreta não é uma generalidade… mas é um truque. Um truque para usar nos debates e para deixar os adversários à esquerda sem argumentação: “Eu é que sou a garantia contra a extrema-direita!” Já temos pouco tempo. Está na hora de os candidatos desarrancarem uma ideia que faça sentido e que possam aplicar, uma vez chegados a Belém. O que tem havido, até agora, é ruído e mais do mesmo.