Corria o ano de 1988, a maioria absoluta de Aníbal Cavaco Silva, que chefiava o seu segundo governo, contava com escassos oito meses. Na RTP, a jornalista Dina Aguiar anunciava o impossível: as duas centrais sindicais, CGTP e UGT, que haviam sido o embrião da grande desavença que levou o PS de Mário Soares a enfrentar o PCP de Álvaro Cunhal, contra a unicidade sindical, e os socialistas a liderarem a resistência civil ao avanço do processo revolucionário comunista, estavam, pela primeira vez, de acordo: uma greve geral tinha sido convocada, em conjunto, pela CGTP-IN, de orientação comunista, e pela UGT, de influência socialista e integradora de uma ala dos TSD (Trabalhadores Sociais-Democratas, maioritariamente afetos ao PSD).
Outras greves gerais se seguiriam, normalmente, quando a direita atingia o poder. Não se trata de um enviesamento ideológico automático: simplesmente, era da natureza das coisas que uma central com forte influência do PS não alinhasse nas “greves gerais” convocadas pela Intersindical. Mas a História dá muitas voltas: mais coisa, menos coisa, esse velho pacote laboral de Cavaco Silva é o esqueleto, com algumas atualizações, das leis laborais que temos hoje e que os sindicatos, agora, tão acerrimamente defendem.
Anos antes, em 1982, durante o governo da AD, uma outra “greve geral”, mas dessa vez apenas convocada pela CGTP, surgira como um evento novo e imprevisível. Nunca se vira semelhante coisa e os seus efeitos podiam configurar aspetos de uma revolução violenta. Algo pateticamente, o então ministro da Administração Interna, Ângelo Correia, viu num pacote de pregos, descoberto no carro de um sindicalista, revistado numa operação stop, o indício de um atentado terrorista: na versão do ministro, serviriam as pequenas tachas para rebentar com os pneus dos carros da polícia que viessem a encaminhar-se para reprimir eventuais tumultos, originados pela greve geral. Para a posteridade, este fait divers ficou conhecido como “o atentado dos pregos”. Quase quatro décadas depois, em 2019, o País, então, sim, sofreria uma perturbação disruptiva, por ação de uma greve setorial: a paragem, por tempo indeterminado, dos camionistas de transporte de matérias perigosas revelou-se, na prática, um evento muito mais problemático do que sucessivas greves gerais. Nesse transe, emergia uma obscura figura, o advogado Pedro Pardal Henriques, que, sem sequer ser camionista, apareceu como porta-voz e líder do protesto. Foi o primeiro grande sinal de alarme, entre o sindicalismo tradicional: um único sindicato não alinhado e uma personalidade de contornos mitómanos e vinda de fora dos meios sindicais obtinham um ratio de eficácia nunca visto, numa única greve. Pela primeira vez, o sindicalismo teve de refletir sobre a emergência dos movimentos inorgânicos, que veríamos, de então em diante, em setores como os dos enfermeiros, dos professores, dos bombeiros e, sobretudo, dos polícias. Inquietantemente, suspeitava-se de que já não era a esquerda institucional a enquadrar o processo, mas que, através de movimentos do tipo “coletes amarelos”, eram outras forças, escondidas da luz do dia – mas frequentemente indicadas como fazendo o jogo do populismo de extrema-direita – a controlar vastas camadas dos trabalhadores. E isso surgia de todos os lados, do setor privado e do setor público.
Aqui chegados, verificamos que uma greve geral, convocada pelos sindicatos mainstream (do sistema) e por centrais sindicais que, sobretudo, representam os trabalhadores do setor do Estado – à partida, não abrangidos por regras como as que se propõem para os despedimentos – será muito mais do que um protesto: este evento vai servir, após vários anos de erosão e decadência, para aferir a força real que os sindicatos tradicionais ainda têm, em Portugal. (Que português se lembrará, hoje, de cor, do nome dos atuais secretários-gerais da CGTP ou da UGT, depois de estas centrais terem tido, no passado, figuras nacionais como Carvalho da Silva ou Torres Couto?…) Esta pode tratar-se de uma greve geral focada em causas e reivindicações concretas, à maneira dos gloriosos tempos das greves gerais, ou pode ser somente uma greve “genérica” – um genérico da velha fórmula, mas que, desta vez, apenas marca posição na defesa de… generalidades.
Afinal, o que está em causa, na greve anunciada para 11 de dezembro? Em primeiro lugar, um novo pacote laboral, mais uma vez, avançado por um Governo de direita. Na verdade, e principalmente, está em causa a facilidade com que se pretende despedir, ou autorizar que se despeça, sem apelo nem agravo. Numa das normas mais polémicas, o Governo propõe que, em caso de despedimento, e tratando-se de uma empresa com menos de 250 trabalhadores, a entidade patronal possa “avançar com despedimentos por justa causa por factos imputáveis ao trabalhador”, mas sem sequer apresentar “provas pedidas por este ou ouvir o que as testemunhas apresentam para o defender, durante o processo disciplinar”. Mais, mesmo nos casos em que o litígio seja declarado ilícito pelo tribunal, o empregador não tem de reintegrar o trabalhador nos quadros.
É uma velha discussão: a proteção no trabalho tende a beneficiar quem já está empregado, mas dificulta os que querem entrar – ou reentrar – no mercado de trabalho? E, com proteção excessiva, a flexibilidade e o dinamismo do mercado de trabalho não ficam em causa? Se eu for empregador, e souber que posso despedir, não irei contratar, sem receios, e com mais facilidade? E isto não fomenta o emprego? O reverso da medalha seria a precariedade institucionalizada, a imprevisibilidade e a insegurança para as famílias. Insuspeito, o presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), Jorge Pisco, considerou, em declarações ao Jornal Económico, que a convocação da greve geral é “perfeitamente normal”, tendo em conta as notícias. E acrescentou, indo, curiosamente, ao encontro dos sindicalistas – e dos partidos à esquerda – que as mudanças preconizadas “vão favorecer” os grandes grupos económicos e as grandes empresas.
Em reação à greve convocada, Luís Montenegro reagiu da mesma forma que reage a muitas das contestações, dos confrontos ou das críticas: com uma dose de assinalável sonsice. Afinal, para Montenegro esta greve não se justifica, porque nenhum pacote laboral foi ainda aprovado. Pois não! A greve geral serve precisamente para tentar criar uma vaga de fundo que impeça a sua aprovação! É, aliás, dos livros! Neste vaivém de argumentação, há que relembrar o primado da democracia. Os portugueses votaram na AD. Mesmo que não venha explicitamente nos programas eleitorais, o eleitorado tem obrigação de conhecer, 50 anos depois, quais são os diferentes ideários em competição eleitoral. A conceção de sociedade defendida pela direita, no que à organização do trabalho diz respeito, é conhecida. Foi nisto que as pessoas votaram. A legitimidade do Governo é total. E a das largamente maioritárias bancadas de direita, no Parlamento, lá postas pelo eleitorado, também.