“Uma agenda transformadora.” Eis como o novo Governo da AD define o seu programa, que se centra em dez eixos fundamentais: um, política de rendimentos; dois, reforma do Estado; três, economia e riqueza; quatro, Imigração (regulada e humanista); cinco, serviços públicos com complementaridade entre oferta pública, privada e social; seis, segurança e combate à corrupção; sete, habitação; oito, infraestruturas: nove, água (mudanças climáticas), e dez, Defesa.
Num primeiro enunciado, encontramos aqui algumas bandeiras liberalizantes, sobretudo se, ao longo do programa de 250 páginas, começarmos a ler as letras pequeninas, como as dos contratos das seguradoras. Na política de rendimentos, valoriza-se o “mérito” e esse conceito parece estar, depois, conectado com as apostas relacionadas com a criação de riqueza e a flexibilização das leis laborais. Na complementaridade prevista para os serviços “de qualidade”, entre oferta pública e privada, esconde-se, como gato com o rabo de fora, a ideia de envolver os privados no espetro de oferta do SNS. Na Habitação, a estratégia é ligar a oferta pública à constituição de PPP, uma receita milagrosa em tempos ensaiada na Saúde, mas também nas grandes obras públicas, como a da construção de autoestradas, lançadas por governos de Cavaco Silva (Ponte Vasco da Gama) ou de José Sócrates. O capítulo da segurança segue as perceções do nosso tempo, onde também encontramos as bonitas palavras do combate à corrupção (embora investigação ao crime de colarinho branco e polícia de giro sejam temas completamente diferentes). Trata-se de dar, de uma assentada, uma resposta à agenda populista ou, melhor dito, da “apropriação cultural” dessa agenda. Tal como acontece no tema da imigração “regulada”, cujo teor populista o Governo bloqueia com a junção do termo “humanista”.
Este programa de Governo não desilude, no sentido em que assume claramente o seu pendor de centro-direita (até na insistência para a baixa do IRC, por exemplo, de que voltaremos a ouvir falar bastante na pré-discussão do próximo Orçamento do Estado), numa mistura curiosa entre tendências sociais-cristãs e influências liberais. E não desilude porque corresponde às opções sobejamente conhecidas de uma área política agora reforçada pelo voto popular. Mas o programa, por isso mesmo – e porque o Governo está relegitimado com uma força eleitoral aumentada –, é o texto mais ideológico de todos os que foram apresentados nos últimos dez anos, governos apoiados pela Geringonça incluídos. E o mais curioso é que, mesmo assim, foi aquele que passou, na Assembleia da República, com menos resistência por parte da oposição (nomeadamente, a do PS), devido às circunstâncias políticas e eleitorais decorrentes do resultado eleitoral de 18 de maio.
O programa situa-se muito à direita dos esboços apresentados, nos anos 90 do século passado, pelos executivos de Aníbal Cavaco Silva. Evidentemente que isso nada tem de errado, na medida em que se trata de um governo legítimo, democrático e de escolha popular reiterada. Em tempos de muita incerteza e fragmentação partidária, os 31 deputados que a AD tem de vantagem sobre o segundo partido mais votado – e os 33 relativamente ao terceiro – parecem ter dado a Luís Montenegro a ilusão de uma maioria absoluta. No fundo, em tempo de perceções, o Governo também tem a sua. E esta perceção “absolutista” é reforçada pelo facto de a AD saber que o PS quer tudo menos eleições, nos próximos tempos, e nada fará, a curto e médio prazo, para derrubar o Governo. Mas também é cimentada pela “blindagem constitucional” que protege o Executivo: haja o que houver, ele encontra-se a salvo de qualquer perspetiva de novas eleições, no prazo de um ano e meio.
Ora, é precisamente esta “blindagem” que, paradoxalmente, também reforça o poder negocial do PS. Os socialistas sabem que, mesmo que o próximo Orçamento seja chumbado, o País não irá para eleições. Assim, se Montenegro quiser impor tudo o que lhe apetecer, o PS pode, portanto, simplesmente, votar contra o próximo Orçamento e obrigar o Chega a juntar-se à AD – um desiderato que, ironicamente, Pedro Nuno Santos, apesar de tentar, nunca alcançou… – ou obrigar Montenegro a ficar bloqueado por um orçamento de duodécimos, coartando boa parte das possibilidades à sua “agenda transformadora”. Foi por isso que a aprovação do programa do Governo, esta semana, não teve história – mas também é por isso que a discussão do Orçamento do Estado para 2026 será muito mais interessante do que agora se imagina.
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