Em agosto de 1578, desapareceu-nos D. Sebastião. Embora, a esta distância, esse pareça ser apenas mais um episódio da nossa história, a verdade é que a marca que nos deixou é bem mais profunda. A falta do rei e a esperança no seu regresso moldou a mentalidade de um povo, criando, pelos séculos adiante, uma constante esperança na infalibilidade salvífica de uma qualquer personalidade que nos alivie o fardo e nos transforme a vida para melhor. Recordando Jorge de Sena, no discurso proferido no dia 10 de junho de 1977, “a nossa história [foi] sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (..) e o desejo de ter-se um pai transcendente, que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido ou D. Sebastião”.
Mas a nossa história não é feita apenas destas fatalidades. Em momentos chave, bem soubemos coletivamente contrariar o fatalismo que se nos cola à pele, com coragem e heroísmo, e sem esperar por um qualquer Messias. Citando Lídia Jorge, agora no seu discurso proferido no dia 10 de junho de 2025, “(…) ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz”.
Apenas dois dias volvidos deste grandioso discurso, assinalar-se-ão os 40 anos da assinatura, a 12 de junho de 1985, do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Em pleno Mosteiro dos Jerónimos, Portugal aderiu à esperança numa maior prosperidade, numa aproximação ao desenvolvimento e às nações com as democracias mais consolidadas, dando assim um passo em frente no seu desejo de liberdade e de progresso.
Mas, mesmo nesse passo tão decisivo, o nosso ADN não deixou de vir ao de cima. No jornal O Comércio do Porto, do dia 13 de junho de 1985, fazia manchete o seguinte título: “Entrada na CEE – Faca de dois gumes”, vaticinando-se que “com o fatalismo tão tradicional no povo português, será de prever que muitos estejam já a dizer que a aposta europeia de Portugal está perdida por falta de condições. (…) Afinal é tão fácil ganhar o coração e o empenhamento de um povo como perdê-lo”. Não obstante, e no geral, integração europeia constituiu para a maioria da população um momento de esperança nacional, de consolidação de uma democracia recém-conquistada, mas também de promessa de mudança e modernização num novo projeto coletivo de solidariedade e aproximação.
Os estudos estão feitos e os atores do sistema estão prontos. Seja na reforma do Estado, seja na reforma da Justiça, não precisamos de um líder salvífico que nos surja num dia de nevoeiro, mas também não precisamos de um Ministério do Sebastianismo, para onde se remetam todas as reformas que sobejamente se proclamam, mas que nunca se concretizam
Todavia, volvidas estas décadas, constata-se que nem todas as promessas foram cumpridas, nem todos os objetivos se alcançaram e aqui, como no resto da Europa, todos os democratas enfrentam hoje o mais sério dos desafios: o de não permitirem que os pilares da democracia, enquanto conquista civilizacional maior, sejam feridos de morte.
Volvendo aos discursos de 10 de junho, em 2019, João Miguel Tavares fez um certeiro apelo: “Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia. (…) A política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota. A política falha quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão. (…) Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar”. E já ali alertou, uma vez mais, para os perigos da nossa natureza secular: “Não podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é assim, porque nunca foi de outra maneira”.
Num momento em que uma nova legislatura se inicia, abrem-se novas possibilidades e expectativas. Mas voltando a Jorge de Sena, “sejamos francos e brutais”: nenhum governo terá sucesso e aplacará a descrença de um povo se não começar por reconhecer os desequilíbrios estruturais que persistem e que impedem uma cabal concretização da nossa Lei Constitucional. A sensação generalizada de impunidade e ineficiência do Estado nos seus diversos setores, as desigualdades sociais e territoriais, a precariedade, a transversal estagnação laboral e funcional, a desmotivação profissional e a perceção da inutilidade do mérito no elevador social, são fatores fulcrais para o desencantamento coletivo. E o que a realidade nos tem mostrado, é que é precisamente dessa frustração que se alimentam as forças populistas a quem a erosão democrática aproveita.
Nesse sentido, digamos com frontalidade que alcançámos um ponto decisivo, em que o grande desafio com que o novo Governo se vai confrontar é o de saber como pretende salvaguardar a democracia e os direitos fundamentais numa era de esmorecimento, muito assente na constatação de que as promessas de progresso e de melhoria de vida não se alcançaram na sua plenitude. Afigura-se urgente que a governação esteja ciente dos perigos que corre o Estado de Direito e que estabeleça as suas prioridades em conformidade, nunca perdendo de vista a necessidade de criar condições para a consolidação da confiança dos cidadãos na democracia representativa. E sob o concreto prisma da Justiça, é primordial que a governação tenha presente que a confiança dos cidadãos nesse sistema deve constituir uma base fundamental dessas prioridades.
Impõem-se, por isso, reformas legislativas que, contrariamente ao que apregoam os discursos simplistas, não destruam o edifício da Justiça de alto a baixo, mas antes contribuam cirurgicamente para a eficiência e assertividade das leis de processo, conferindo celeridade ao sistema, nas diversas jurisdições, sem quebra de direitos fundamentais. Impõe-se combater os fenómenos da violência doméstica, da violência contra as crianças, da criminalidade violenta e organizada, com ênfase agora também para novas realidades ocorridas em contextos grupais, frequentemente assentes em motivações racistas, xenófobas ou políticas. Importa que se atente devidamente aos fenómenos criminais ocorridos em contexto virtual ou que têm na internet a sua origem e publicidade, seja por via da divulgação de discursos de ódio, seja por meio da arregimentação de jovens para grupos que visam espalhar o terror.
Urge, por isso, que se dote a Justiça dos meios humanos e técnicos que lhe permitam, à luz das complexidades sociais do século XXI, atuar eficazmente, não apenas ao nível da repressão, mas igualmente da prevenção. De uma vez por todas, compreenda-se que a alocação de recursos financeiros a este sistema é fundamental à democracia. Não se serve o povo, nem se lhe ganha a confiança sem que o mesmo percecione a eficácia do sistema. E este carece urgentemente de ferramentas legais mais eficazes, de investimento assertivo para melhor prevenir e perseguir a criminalidade e de meios humanos suficientes e devidamente motivados. Estes alertas não são de agora, mas tornam-se prementes num contexto de diminuição vertiginosa e sucessiva do número de magistrados judiciais e do ministério público, aliada à ausência, na prática, de assessorias eficazes, em contraponto com o aumento da complexidade dos fenómenos sociais.
Os estudos estão feitos e os atores do sistema estão prontos. Seja na reforma do Estado, seja na reforma da Justiça, não precisamos de um líder salvífico que nos surja num dia de nevoeiro, mas também não precisamos de um Ministério do Sebastianismo, para onde se remetam todas as reformas que sobejamente se proclamam, mas que nunca se concretizam.
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