A 25 de Abril de 2021, nos jardins da Residência Oficial de São Bento, o então primeiro-ministro, António Costa, condecorou Sérgio Godinho com a Medalha de Mérito Cultural. O projetado concerto de fim de tarde fora previamente gravado, devido às restrições impostas pela pandemia, e transmitido nas redes sociais do governo. Não estávamos em período eleitoral e Sérgio Godinho, como anotou António Costa, era, consensualmente, uma voz de Abril e, portanto, politicamente correta o suficiente para que ninguém ousasse acusar o governo de estar a retirar dividendos da celebração, abusando do poder e das instalações oficiais do Estado, mantidas por todos nós.
Tony Carreira, por seu turno, não se notabilizou – como Sérgio Godinho – pela resistência à ditadura, até porque, em abril de 1974, tinha apenas 10 anos. A arte simplória – alguns diriam “alienante” – de Tony Carreira podia perfeitamente ter medrado durante o Estado Novo, sem nenhum aperto da censura nem qualquer restrição política. Ele é o representante perfeito da forma musical que a Revolução execrou: o “nacional cançonetismo”. Na verdade, a “utilização” de Sérgio Godinho e a de Tony Carreira, tal como a de Cristiano Ronaldo ou a dos campeões nacionais recebidos nos Paços do Concelho de Lisboa ou do Porto, servem exatamente o mesmo propósito: a projeção política de quem os homenageia, convida ou condecora. Quem nunca? Todos os líderes partidários tiveram os seus artistas, cantores, atores ou intelectuais de serviço. E todos os primeiros-ministros, numa ou noutra altura, os usaram, alguma vez, para promoção própria, o que resulta em notoriedade e satisfação da húbris para as duas partes. Acontece que uma certa elite de esquerda (e não só elite) não perdoa a Montenegro ter “conspurcado” o 25 de Abril e o 1º de Maio, dois em um, com a atuação de um cantor popularucho, sem substância nem pergaminhos de “ativista”, ainda por cima, acusado de plágio, e confesso apoiante de um PSD que, alegadamente, assobia para o lado sempre que se comemoram estas datas. Montenegro teria feito uma “apropriação cultural” do 25 de Abril, ainda para mais, de forma populista. Sérgio Godinho, que aceitou o convite de Costa, não aceitaria um convite de Montenegro (que, aliás, dificilmente o condecoraria). Mas se fosse Sérgio a escolha, o primeiro-ministro não teria sido criticado (exceto pelo Chega). Tony Carreira representa, para os críticos, a alienação do povo. Também Estaline, através do Sindicato dos Escritores, tornou proscritos escritores como Boris Pasternak (impedido pelas autoridades soviéticas de receber, presencialmente, o Prémio Nobel da Literatura, em 1958, já depois da morte do vozhd) ou poetisas ímpares como Anna Akhmátova ou Marina Tsvetáieva, porque a sua escrita era sentimental, subjetiva, individualista e não estava ao serviço da Revolução. Ora, mal ou bem, este Tony Carreira, não sendo um Nobel, é do povo. Tal como o 25 de Abril. E não podemos seguir o conselho de Bertolt Brecht e mudar de povo.
Tony Carreira, que reincidiu, aparecendo a fazer vídeos de promoção do cabeça de lista da AD por Portalegre, Castro Almeida, é um trunfo potente, em campanha. Ele não iria, como Carlão, Tim ou Ana Bacalhau, à Festa do Avante!, mas o PSD tem direito ao seu artista de estimação (e de cassete pirata), como outros partidos têm direito aos seus artistas de playlist. Isso diz alguma coisa do PSD. Mas a democracia também liberalizou o mau gosto. O problema, portanto, não está em Tony Carreira, mas na confusão total que o Executivo está a fazer entre funções governativas e campanha partidária. (Joana Amaral Dias, candidata do ADN, embora tomada, nos últimos anos, por alguma chalupice, em matéria de teorias da conspiração, acusou Luís Montenegro ter usado viaturas do Estado, para não chegar atrasado a um compromisso… partidário. Não foi desmentida). Tony Carreira em São Bento foi uma pura e simples ação de campanha eleitoral, aproveitando uma data oficial, num edifício público representativo da soberania do Estado. O problema não é, pois, Tony Carreira, nem Tony Carreira no 25 de Abril, ou no 1º de Maio. Aliás, muitos trabalhadores e, especialmente, trabalhadoras humildes, se terão sentido atingidos(as) pelo desprezo talibânico a um ídolo cujas músicas trauteiam de cor. O problema não é, então, o “menino” nem o seu sonho. O problema é Luís Montenegro e as suas confusões. Entre Estado e partido. Como entre governação e negócios. Já agora, se a AD tivesse apostado em Tony Carreira como cabeça de lista por um dos círculos da Emigração, então sim, teria prestado um serviço ao 25 de Abril, roubando um deputado ao Chega. Isto teria sido esperto. Não chico-esperto.
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