Por vezes, ponho-me a pensar. Imagino que serei velho, e que daqueles que me viram crescer não resta ninguém. Os prédios não serão os mesmos, os vizinhos, igual. A rua que atravessava, diariamente, sem já nenhuma das famosas pastelarias. A velhinha da casa em frente tossindo o império pela noite fora. Gatos, a quantidade de gatos que a cidade fez. E isto tudo para quê? Quem foi que decidiu, lá nos escritórios dos céus, que determinadas coisas procederiam deste modo e não de outro? É por ordem divina que os homens fumam cigarros às janelas dos domingos, em tronco nu, fitando as decisões de vida que não tomaram? Que todos trabalhamos até às olheiras apenas para chegarmos, exaustos do naufrágio moral, ao próximo mês? Que tudo isto seja, ao mesmo tempo, espetacular e sem sentido algum? Que quem amei – e amei com tal ternura – me tenha desaparecido por entre o sono, o sonho, a noite de Luar em que acordo, suado, perguntando-me pela voz que nunca mais ouvi; e pelas insónias passadas em corredores, para onde partiram, e porquê, e quanto tempo faz, e qual a razão, e quando me ensinaram que quanto mais apertamos as folhas da saudade mais elas se desfazem por entre as mãos, mais elas estalam e contorcem-se e caem para um poço a que somente de quando em quando podemos visitar, mas de novo o Progresso e a Democracia a encherem os nossos sonhos de narrativa e futuro e marcha, e é assim, e bora nessa, e tudo conforme previsto na Portaria 80/12 de 2021, e o que interessa é continuar, agora olhar para trás para quê!, que amanhã esperam-nos no trabalho, e no fim do mês descontam-nos a vida e comem-nos parte da solidão, e somos deixados assim, e somos deixados aqui, num quarto às escuras, e somos o cidadão exemplar, o fruto maduro da nespereira, o poema tributável, a razão das coisas se moverem, mas de novo a calma, e as ideias todas da realidade a desvanecerem na digestão do jantar, e a noite, trazendo os seus bichos e as suas mágoas e revelando-nos de novo um “eu”, mais verdadeiro, cada vez mais esquecido e magoado, a personagem das lágrimas secas junto às pálpebras – que em romeno se diz ploape – perguntando há quanto tempo não se encontravam nas escadas, e na verdade as escadas não existem mas sim uma má comunicação entre ti e ti, adiada pelos infinitos minutos e séculos de afazeres que te tomam o tempo todo sem margem para uma braçada, uma respiração.
E, posto isto, deparas-te agora com esta pessoa que te fita do outro lado do espelho e com quem trocas um hesitante “Olá. Há quanto tempo?” E há demasiado, porque nos sugaram, a todos nós, a possibilidade da loucura e da poesia. É mais fácil memorizarmos o número de contribuinte do que um verso de Camões. Mas a pessoa do outro lado mantém-se hirta, magoada, exigindo um pedido de desculpas que já não sabes dar, porque o lirismo há muito voou da tua casa. Tornaste-te nisto: o corpo adiado, o logo se vê, o esquecimento. Apalpando o rosto que a vida fez, encontras apenas as geometrias do silêncio, palavras sobrepostas de modo a que se percam quando sussurramos.
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