Com a devida vénia, fui buscar o título desta crónica a Nanni Moretti, autor de um filme memorável, que há mais de 20 anos venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O filme não é propriamente exemplificativo da obra do cineasta italiano. Chama-se O Quarto do Filho (2002) e nada tem de humorístico, de exaltação dos valores da esquerda ou de olhares sarcásticos acerca dos destinos políticos de Itália, na linha que segue desde o longínquo Caro Diário (1993) ao mais recente O Sol do Futuro (2024).
Em O Quarto do Filho, a vida familiar de um casal é interrompida por um acontecimento impensável, inadjetivável: um dos filhos, adolescente, morreu durante uma expedição de pesca submarina. Giovanni (o pai, interpretado pelo próprio Nanni Moretti) é psicanalista e, por isso, está habituado a encontrar explicação – e remédio – para todo o mal de vivre. Agora, pela primeira vez na vida, não tem respostas para dar: não está no divã, mas a sua dor é atroz, não tem forças para voltar a entrar no quatro do filho.
Em Adolescência, o sofrimento do pai, o canalizador Eddie Miller, interpretado por Stephen Graham, também é imperscrutável. Ao contrário do que acontece no filme de Nanni Moretti, o filho de Eddie não morreu. Jamie está preso numa instituição para menores e aguarda julgamento pelo homicídio de uma colega de escola. Há, pelo menos, duas décadas que Gus Van Sant filma o submundo da adolescência, mas a minissérie da Netflix – que em duas semanas foi vista por milhões de espectadores em todo o mundo – tem o mérito de trazer para a esfera pública o debate sobre a adolescência na era da internet e das redes sociais.
Embora a série não se inspire num caso real, o ator Stephen Graham já explicou que tudo nasceu de uma notícia de jornal. Ficou impressionado, quis filmar em plano sequência para nos levar para o interior daquela família, para se perceber a devastação daqueles pais. Em entrevista à jornalista Christiane Amanpour, na CNN, Graham lembrou um conhecido provérbio: “É preciso uma aldeia para educar uma criança.” Perante a tragédia, a família chegou a pensar em mudar de casa. Não cometeram nenhum crime, mas carregam o peso do crime de Jamie. “Ele é nosso”, profere Lisa, a outra filha do casal. É Lisa – como ela diz, deixou de ter identidade própria, passou a ser “a irmã de Jamie” – que argumenta que é melhor ficarem onde estão. Noutra casa, noutro lugar, seria muito pior, quando a vizinhança descobrisse quem são.
Se Adolescência se baseasse na técnica do suspense e o argumento se desenrolasse como uma história policial, teríamos todas as respostas, é sabido. Quem matou? Por que razão matou? De onde veio a faca, a arma do crime? O que escreveu a psicóloga no relatório? Desde o primeiro episódio que não existem dúvidas de que Jamie matou a colega. Na verdade, Jamie – interpretado pelo estreante Owen Cooper – nem sequer um adolescente parece: tem cara e corpo de criança, quando muito será um pré-adolescente (quanto mais um incel… um incel de 13 anos?).
Escreve Doreen St. Félix na The New Yorker que Adolescência tem a lógica inversa de Euphoria, “que desencadeou o pânico moral antiquado por fetichizar a rebeldia da adolescência”: “Adolescência, pelo contrário, faz do pânico moral um fetiche. A internet não é representada através de ecrãs divididos, mas antes como um mal emanado – um vapor – que distorce o mundo de mães e pais ingénuos.”
O fim do último episódio desenrola-se como uma peça de teatro. O pai entra finalmente no quarto do filho. Faz 50 anos nesse dia. Stephen Graham é soberbo e, por isso, tudo fica nas entrelinhas. O quarto ainda é um quarto de criança. Há ursos de peluche e papel de parede com luas e planetas. Eddie esforçou-se por ser um bom pai, melhor do que o seu próprio pai, diz à mãe (que, de vez em quando, confessa, entra no quarto para limpar o pó). Choram perdidamente, sabemos que se sentem culpados, que duvidam de tudo: se erraram, em que é que erraram, se podiam ter feito algo que não fizeram, se fizeram algo que não deviam ter feito… Podiam? Apenas julgavam que Jamie estava seguro no quarto, longe de todos os perigos.
Deixo as últimas palavras desta crónica para todos os pais que, por alguma razão, perderam os seus filhos. Por mais que tente, não consigo pôr-me no seu lugar, não imagino o que lhes passa pela cabeça, não faço a mais pequena ideia do que sentem. Por mais que isso nos custe aceitar, sei que pode acontecer a qualquer um. Admiro-vos apenas por continuarem aqui. Por serem capazes de limpar o pó dos quartos dos vossos filhos, por encontrarem uma forma digna de prosseguir caminho – na tragédia da morte ou nas tragédias da vida.
Breviário
Escolhemos não ver?
Os resultados preliminares do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) dão conta de que existem casos de crianças e jovens portugueses a serem aliciados em grupos online internacionais por neonazis e também por radicais islâmicos. O relatório destaca ainda outro fenómeno a envolver os mais novos: a presença de menores em crimes de pornografia com recurso a redes sociais como o Discord e o WhatsApp, utilizadas para partilhar ficheiros de cariz sexual e pornográfico. Sabemos como é difícil obter dados em Portugal e, ainda mais, sustentar neles políticas públicas: quando existem, no mínimo, é estúpido continuar a ignorá-los.
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