O Povo saiu à rua. Mesmo que por cá a ressonância desse facto seja ainda insuficiente, a verdade é que saiu. E saiu em força, um pouco por toda a Europa que é também a nossa casa. Ao longo do fim de semana passado ocorreram manifestações populares de grande magnitude em países como a Itália, a Hungria, a Roménia ou a Sérvia. Em plena década de 20 deste século XXI, que se imaginava de progressos e liberdades, constatamos que os cidadãos europeus começam a sentir-se desorientados, à procura de respostas e, novamente, com uma necessidade muito vincada de se fazerem ouvir em conjunto. Enquanto estas manifestações decorriam, múltiplas imagens que espelhavam a magnitude do que estava a acontecer foram sendo partilhadas. Eram retratos de cidadãos unidos na sua diversidade, clamando pela unidade e pela liberdade da União Europeia (UE).
Na Piazza del Popolo (Praça do Povo), em Roma, o slogan era particularmente elucidativo dos tempos conturbados em que vivemos: “Aqui fazemos a Europa, ou morremos”. De Itália vi a imagem mais marcante de todas. Enquanto a grande manifestação decorria, uma criança, na sua absoluta serenidade, brincava alegremente em cima de uma gigante bandeira da União Europeia. Feliz. Alheada da gravidade dos motivos pelos quais os adultos ali se haviam concentrado. Imediatamente fui remetido para a década de 50 e para a beleza das imagens do “Ballon Rouge” (Balão Vermelho) de Albert Lamorisse. Um filme que conta a história de Pascal, um menino solitário que encontrou um balão vermelho a caminho da escola em Paris. Após algum tempo juntos, o balão ganhou vida própria e ambos se tornam companheiros inseparáveis. Mas, a amizade entre os dois rapidamente despertou invejas e Pascal, por causa do seu amigo voador, começou a ser impedido de entrar no elétrico, a ser castigado na escola e, finalmente, a ser perseguido por um grupo de jovens mais velhos que conseguem destruir-lhe o balão. Pascal fica devastado, mas, num momento de pura magia, todos os balões da cidade se unem e elevam o menino pelos céus de Paris, como que o salvando para um lugar melhor.
Lamorisse, nesta história intemporal, brinda-nos com a lição de como a alegria e a liberdade podem despertar hostilidade e a crueldade. Do mesmo modo, ensina-nos que se nos virmos numa situação em que nos tiram a capacidade de sonhar, nada melhor do que a união entre todos para voltarmos a afirmar de novo os nossos valores e a nossa esperança coletiva. A Europa é, e deve continuar a ser, um espaço livre. E isso incomoda os extremismos. Ao ver a fotografia daquele menino a brincar sobre a bandeira da União Europeia, lembrei-me de Pascal com o seu balão vermelho a passear alegremente pelas ruas de Paris. E ao ver tantas manifestações a decorrerem em simultâneo, levadas a cabo sob o signo da liberdade e da tolerância, lembrei-me de como cada pessoa ali presente representava um dos balões que se uniu em torno daquele menino, para o defender e lhe proporcionar algo melhor. É esse o propósito quando o Povo sente a necessidade de se manifestar.
Em plena década de 20 deste século XXI, que se imaginava de progressos e liberdades, constatamos que os cidadãos europeus começam a sentir-se desorientados, à procura de respostas e, novamente, com uma necessidade muito vincada de se fazerem ouvir em conjunto
Há algumas semanas assinei aqui um artigo de opinião intitulado Lições húngaras. Aí anunciei a grande manifestação de juízes que iria ter lugar no dia 22 de fevereiro, em defesa da independência judicial e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Pois bem, a manifestação não só teve lugar como foi um retumbante sucesso em termos de participação e adesão. Todavia, o pior estava para vir. No passado dia 15 de março, dezenas de milhares de pessoas, de bandeira nacional em punho, manifestaram-se em Budapeste contra erosão do Estado de Direito naquele país. No mesmo dia, Orban proferiu um violento discurso em que se comprometeu a tomar medidas contra juízes, jornalistas, ativistas políticos e ONG, a quem chamou de “bugs” (bichos ou insetos) que “já sobreviveram por tempo demais” e prometeu efetuar uma “grande limpeza de Páscoa”.
Chegou rapidamente a confirmação do que então dizia naquele artigo: quando os regimes autocráticos lançam as suas bases, o caminho imediato é o de enfraquecer os direitos e liberdades fundamentais e atacar a independência do poder judicial. Numa estratégia totalitária, os “bichos” mais inconvenientes são sempre os jornalistas livres, os juízes independentes e as mentes pensantes, sobretudo as que se batem por causas. Não surpreende por isso que, num relatório deste mês, a “Liberties” (União Europeia para as Liberdades Civis, uma organização de vigilância para a proteção dos direitos humanos na UE), tenha concluído que estamos a assistir a uma deterioração do Estado de Direito no seio da União, com uma progressiva regressão dos direitos civis e com novos desafios a serem colocados aos sistemas judiciais, à liberdade de imprensa e aos sistemas de controlo democráticos. O relatório aponta ainda para várias deficiências sistémicas em vários Estados-membros, categorizando-os em grupos como os “estagnadores” (em que não se verifica qualquer progresso, tal como a Grécia, a Irlanda, Malta, Países Baixos ou Espanha), os “sliders” (correspondentes a democracias fortes mas em queda, designadamente a Bélgica, a França, a Alemanha e a Suécia), ou os “desmanteladores” (onde o Estado de Direito é minado intencionalmente, como a Itália, a Croácia, a Roménia, a Eslováquia ou, o caso mais grave, a Hungria). Ali se alerta também para o impacto da ascensão da extrema-direita e das tensões geopolíticas, defendendo ações mais firmes da Comissão Europeia para proteger a democracia no espaço da UE.
Conscientes do que nos rodeia pela Europa fora, importa que nos questionemos permanentemente sobre que futuro pretendemos reservar para todas as crianças que impavidamente brincam com os seus balões. Teremos o discernimento para reagir ou será que continuamos a achar que não é nada connosco?
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