Neste último par de anos, como professor, já escrevi nalguns quadros. A minha caligrafia – infantil para a profissão -, é de seguida apagada, dando lugar a novas informações.
Ora, a questão é que os quadros, em Portugal, talvez em virtude da sua má qualidade, produzem o efeito mais surpreendente: em vez de apagarem realmente a tinta, relegam-na para um certo plano de fundo. A dado momento, exibem diversas camadas em profundidade, produzindo uma textura impossível, já, de apagar.
Assim, quando olhamos para um quadro, vemos os dias, as horas e os meses que eles comportam. Serviram a profissão, demonstrada nas cicatrizes da sua existência. O quadro é, também, o símbolo da perenidade, do transitório. Animado pelos dedos no ar e pela promessa de mais tinta, desfruta da sua utilidade. Mas o mesmo quadro, umas horas depois, verá sair a última pessoa, a luz que se apaga e o silêncio.
Imagino que o mesmo se passe connosco, ao chegarmos às casas vazias. Imagino os velhinhos que se demoram no café, para fugir à solidão, a casa sempre limpa e as longas chamadas com uma filha já impaciente para ir fazer o jantar. E, já que aqui estamos, quem disse que isto de viver era fácil? E quem serei eu ou o que faço aqui, senão um montinho de memórias, pessoas e cheiros que passaram, como comboios a alta velocidade? Tudo isto é, em última análise, estranho. Estranho e bonito, porque amanhã conversarei finalmente com o velhinho do café.
E hoje, no fim da aula e só por prazer, deixarei o quadro por apagar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.