Isto poderia ser enunciado de uma maneira filosófica, mas vamos deixá-lo para os mais encartados. A ideia da prevalência do interesse individual sobre interesses coletivos e, nomeadamente, a conceção de que o “eu” se sobrepõe de forma implacável ao “nós” – e a uma certa noção de “bem comum”, que até agora constituiu um chão comum, pelo menos nas ditas sociedades ocidentais do pós-guerra.
Dos sistemas de saúde e de educação ao crescimento económico e à utilização da tecnologia nos tempos livres, há já algum tempo que este sentimento perpassa vários aspetos da – nossa? – vida pública. Os mais críticos dirão que falamos dos valores e princípios da social-democracia, os mais pragmáticos dirão que falamos do “grande centrão”. A perceção que tenho é de que, enquanto trocamos entre argumentos, não chegamos a lado nenhum. A nova ordem mundial não vem aí, ela já aí está. Ouve-se que Donald Trump continua imprevisível, mas não há grandes surpresas nesta guerra comercial: as políticas de protecionismo económico não só estavam no programa do Partido Republicano como foram amplamente anunciadas durante a campanha eleitoral.
Imprevisíveis serão os resultados desta guerra a que até o Wall Street Journal já chamou “a guerra comercial mais idiota da História”. O Prémio Nobel da Economia Paul Krugman comentou, no Substack, que as tarifas ameaçam a fé global na América. “Mesmo que algumas das tarifas sejam temporárias, o Rubicão foi ultrapassado”, defende Krugman. “Sabemos agora que, quando os EUA assinam um acordo, de comércio ou de outra coisa qualquer, o Presidente vai olhá-lo apenas como uma mera sugestão, a ser ignorada sempre que lhe apetecer. Essa revelação, por si só, causará enormes danos a longo prazo.” Para o antigo professor do MIT e da Universidade de Princeton, a queda dos mercados financeiros da última segunda-feira, 3, pode antecipar uma queda mais acentuada: “Esta complacência do mercado é uma profecia autodestrutiva: a reação silenciosa do mercado propicia que Trump continue e expanda a sua guerra comercial.”
Não é preciso ser Nobel (vénia, vénia, senhor Krugman) para saber como esta atitude pode atrapalhar o crescimento. Um documento realizado para a Reserva Federal, citado pela The Economist, concluía que a incerteza da política comercial durante o primeiro mandato de Trump, então concentrada sobretudo na China, reduziu em, pelo menos, 1% o investimento nos EUA, só no ano de 2018. Não sabemos quando, mas as novas tarifas chegarão à União Europeia, “definitivamente”, avisou o Presidente norte-americano. Acrescentou também: “Eles não compram os nossos carros, não compram os nossos produtos agrícolas, não levam quase nada e nós compramos-lhes tudo.”
Apesar de a frase de Trump ser apenas uma parte da história da relação comercial entre os EUA e a União Europeia, não deixa de ser um facto. O que não significa que daí dependa o renascimento da indústria transformadora americana… No princípio da semana, António Costa convidou os líderes europeus para um “retiro estratégico” em Bruxelas, com o objetivo de discutir matérias relacionadas com defesa e segurança, mas acabou subjugado à agenda de Donald Trump. Sobre o aumento de despesa militar, a presidente da Comissão Europeia admitiu ser possível ajustá-lo às regras orçamentais. “Em tempos extraordinários, é possível ter medidas extraordinárias”, afirmou Ursula von der Leyen.
Não é só no domínio dos valores e dos princípios que o jogo de Trump, o novo-velho engenheiro do caos, é perigoso: na política do triste e orgulhosamente sós, os mais frágeis e os mais pobres serão sempre os primeiros a sofrer. Cinicamente, num mundo onde prevalece o “eu”, até poderia ser admissível perguntar: problema deles? Ou “nosso” também?
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