A trapalhada relacionada com a demissão de Gandra de Almeida do cargo de diretor-executivo do SNS é uma espécie de cereja no topo de um bolo que costuma conduzir o titular de um cargo ministerial – neste caso, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins – ao estatuto de “remodelável”. Os ingredientes estão lá todos e refletem um padrão já experimentado noutros governos, em particular, os de António Costa, em que uma coisa leva à outra. O caso é simples: à data da nomeação de Gandra de Almeida, a ministra sabia, ou não sabia, que ele tinha acumulado funções no SNS, sendo remunerado por serviços prestados em vários hospitais, como médico tarefeiro, ao arrepio da lei, que exigia exclusividade, como dirigente do INEM do Porto? E se não sabia, devia ter sabido?
Do que se conhece, no momento em que este texto está a ser escrito, é que muito dificilmente a ministra não saberia de factos que eram públicos e que constavam do próprio currículo do indigitado. Esta semana, a ministra alegou que se limitou a seguir o parecer positivo da CRESAP (organismo que superintende sobre a contratação pública), numa declaração de passa-culpas – sendo que, de facto, a própria CRESAP não fica isenta de responsabilidades. Seremos levados a concluir, no entanto, que, perante o parecer da CRESAP, a ministra, talvez juridicamente mal assessorada, assinou a nomeação de cruz. Aparentemente, e segundo notícias não desmentidas cabalmente – a não ser pelas alegações vagas de Gandra de Almeida sobre “imprecisões e falsidades” não especificadas –, o ex-diretor-executivo detinha, com a mulher, uma empresa de prestação de serviços que teria operado no SNS, como tarefeira. Ou seja, eventualmente, não seria ele a prestar o serviço, diretamente, mas sim “a empresa”, o que, pelo menos, no plano ético, vai dar ao mesmo. Agora, Gandra de Almeida foi substituído pelo experiente gestor Álvaro Santos Almeida, professor na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, que já liderou a Entidade Reguladora da Saúde, o que, na interpretação do “comentador” Marcelo Rebelo de Sousa, é uma nomeação “defensiva”.
Ou seja, apesar das dúvidas de Marques Mendes, que, na SIC, este domingo, propôs que se fizesse uma reflexão sobre a necessidade de termos uma “Direção Executiva do SNS”, o órgão continua a existir. Realmente, se pensarmos bem, a ideia do governo anterior de criar um órgão (e um cargo mais bem remunerado do que o do próprio ministro da tutela) foi recebida com ceticismo pela então oposição, PSD incluído. O certo é que, chegados ao Governo, os sociais-democratas mantiveram a estrutura. Ainda que, devido a desacordos antigos – de quando a ministra foi presidente do Hospital de Santa Maria e se demitiu –, as relações entre o anterior diretor-executivo, Fernando Araújo, e Ana Paula Martins fosse tensa. Digamos que nenhum deles queria trabalhar com o outro e Araújo demitiu-se. Da parte da ministra, o que se sentiu foi alívio, por se ter livrado do antigo “inimigo”. As dúvidas de Marques Mendes, entretanto, fazem sentido: o que é que a Direção Executiva pode fazer que não deva ser feito por uma estrutura tão pesada como a dos serviços pré-existentes do Ministério da Saúde? Aparentemente, a explicação terá a sua lógica: o Ministério define as grandes linhas da política de Saúde e a Comissão Executiva, mais ágil e próxima do terreno, planeia e executa orientações técnicas. Este modelo exige, porém, estabilidade. E essa nunca foi uma prioridade, nem para a ministra, nem para Gandra de Almeida: a ânsia de fazer uma “limpeza” varreu, sem explicação plausível, várias administrações hospitalares e de ULS pelo País: Viseu-Dão Lafões, Lezíria, Leiria, Alto Alentejo, Almada-Seixal (com o Hospital Garcia de Orta), etc. Declarações explosivas sobre a competência de algumas administrações criaram anticorpos contra Ana Paula Martins. E casos como o do caos das maternidades e dos serviços de obstetrícia, no verão, das broncas do atendimento da Linha de Saúde 24, da promessa falhada de um plano de emergência para 60 dias, apresentada pelo primeiro-ministro, e da greve do INEM – com a suspensão da assistência de emergência médica que pode ter sido a causa direta de várias mortes – completaram o quadro de um consulado tão cheio de casos e casinhos que fazem de figuras como Marta Temido verdadeiros “santinhos de altar”. Ora, para proteger o primeiro-ministro, quem costuma cair são os ministros. Veremos se Montenegro remodela antes ou depois do verão, antes ou depois das eleições autárquicas. Ou se a ministra da Saúde se aguenta tanto tempo.
Golpe de vista
Política de campanário
Na passada sexta-feira, a AR aprovou uma série de desagregações de freguesias, mais de 300, pelo País inteiro, revertendo uma importante reforma administrativa sugerida pela Troika ao governo de Passos Coelho – que a defendeu com convicção. Mas já se esqueceram: em ano de eleições autárquicas, na ânsia (correndo o risco da injustiça da generalização) de satisfazer bairrismos, e com muitas clientelas partidárias locais a quem agradar, os dois maiores partidos lá se entenderam para reverter uma das poucas medidas racionais do período de “ajustamento”. Até que sejam obrigados a reverter a reversão, claro.
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