A disputa tecnológica entre os Estados Unidos e a China é um vetor central da política internacional atual, marcada por uma rivalidade em áreas como semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações e cibersegurança. Os EUA têm adotado medidas para conter o avanço tecnológico chinês, como restrições à exportação de tecnologia avançada e sanções contra empresas chinesas (como a Huawei e a ZTE), acusadas de representar riscos à segurança nacional. Por outro lado, a China procura reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras. Para isso, tem realizado investimentos massivos em inovação e autossuficiência tecnológica, com iniciativas como o “Made in China 2025”. E o leitor que não se engane: não se trata apenas de economia, mas de disputas pela supremacia global em setores estratégicos, em domínios securitários e influência geopolítica.
No meio dessa rivalidade, a União Europeia tenta equilibrar-se entre as pressões dos dois gigantes, enquanto protege os seus próprios interesses estratégicos. Por um lado, os Estados Unidos pressionam os europeus a restringirem o uso de tecnologia chinesa, especialmente em infraestruturas críticas como as redes 5G; por outro lado, a China é um parceiro comercial crucial para alguns Estados-Membros da UE, tornando a postura hostil norte-americana pouco viável.
Com (ou mesmo sem precisar deles) os novos ventos que chegam dos Estados Unidos da América, os últimos anos têm sido marcados por uma intensificação, por parte da UE, dos seus esforços para proteger o mercado interno de ciber-ameaças e influências externas.
Esta posição, diga-se, tornou-se particularmente evidente na forma como o bloco lida com a tecnologia chinesa. A recente introdução do Cyber Resilience Act (CRA) é mais um capítulo desta narrativa, sinalizando uma postura mais assertiva em relação à segurança digital e à soberania tecnológica, alinhada com o reforço da postura europeia, vincada na Diretiva NIS2.
Para o leitor entender do que estou a falar, o Cyber Resilience Act é uma iniciativa legislativa inovadora (e audaz), que estabelece requisitos rigorosos de cibersegurança para dispositivos conectados, desde eletrodomésticos inteligentes até sistemas industriais. Ou seja, o principal objetivo do CRA é garantir que os produtos vendidos no mercado europeu sejam seguros, protegendo os consumidores e as infraestruturas críticas de ciber-vulnerabilidades.
Contudo, a interpretação política desta medida não pode ser ignorada…
Uma Estratégia de Defesa ou de Contenção?
Já desde o legado de Merkel, a China tornou-se na maior exportadora de tecnologia para a Europa. O que a UE vem afirmar – através do CRA – é que quer cortar com gigantes como Huawei e Xiaomi. Estas empresas, frequentemente acusadas de estarem alinhadas com os interesses do governo chinês, têm enfrentado uma crescente resistência no Ocidente. A UE, ao exigir mais especificidades técnicas e certificações (que podem ser difíceis de atender para empresas que não compartilham os mesmos padrões de transparência e segurança que a Europa promove), vem criar ainda mais barreiras à entrada destes fornecedores no mercado europeu.
Além disso, a legislação também está alinhada com a agenda geopolítica mais ampla de diversificação das cadeias de fornecimento e da diminuição da dependência de parceiros considerados estratégicos, mas potencialmente adversários. É uma resposta clara ao que muitos dentro do bloco europeu veem como uma “diplomacia tecnológica” chinesa, onde o controlo sobre infraestruturas digitais e a recolha de dados desempenham papéis centrais.
Não vamos mais longe: a Huawei é um dos maiores fornecedores de equipamentos 5G, mas muitos Estados-membros temem que sua infraestrutura possa incluir “backdoors” que permitiriam espionagem ou interrupção de serviços críticos.
O Peso das Consequências
Embora as preocupações e ações legislativas sejam reais e plausíveis, as suas consequências podem ser ambivalentes. Por um lado, promove um mercado mais seguro e competitivo, impulsionando a inovação entre os fabricantes europeus. Por outro, corre o risco de agravar as tensões comerciais com a China, um dos maiores parceiros económicos da UE.
Além disso, o CRA pode aumentar os custos para os consumidores europeus. As exigências rigorosas de conformidade podem excluir do mercado produtos chineses acessíveis, reduzindo a oferta e elevando os preços. As pequenas e médias empresas europeias também podem enfrentar dificuldades para se adaptarem às novas leis do mercado, limitando sua competitividade frente a grandes players.
O Habitual Dilema: (ciber)Segurança vs Liberdade Individual
Último ponto, e vamos mesmo ter de falar sobre isso…
Não é só a Huawei ou a Xiaomi que está na mira desta ampla estratégia político-diplomático-ideológica da União Europeia. Vejamos, por exemplo, o caso do TikTok e da Shein. Tanto uma como a outra são acusadas de recolher vastas quantidades de dados, incluindo informações pessoais, preferências e padrões de navegação. Existe receio de que esses dados possam ser explorados pelo Partido Comunista Chinês, devido às leis de segurança da China.
A partir daqui, as plataformas têm livre-passe para todo o tipo de políticas de transparência e práticas – sejam elas contra ou a favor desses conceitos. Não é por acaso que o Tiktok tem sido caraterizado com uma veículo de disseminação de desinformação, manipulação da opinião pública e promoção de narrativas pró-China ou desfavoráveis ao bloco ocidental. Não por acaso, há esforços para limitar o uso de TikTok em dispositivos governamentais por razões securitárias…
As práticas de moderação de conteúdo e o impacto psicológico sobre crianças/adolescentes também geram muitas preocupações de segurança social.
Uma Aposta na Soberania Digital
Ao endurecer a sua posição em relação à tecnologia chinesa, a UE envia também um sinal claro de que a sua soberania digital é uma prioridade estratégica. O CRA faz parte de um conjunto mais amplo de iniciativas – como o Digital Services Act e o European Chips Act – que visam fortalecer a autonomia tecnológica do bloco europeu. Este movimento reflete uma conscientização crescente de que a cibersegurança não é apenas uma questão técnica, mas um pilar central da segurança nacional, competitividade económica e da continuação da preservação dos valores democráticos.
No entanto, a “guerra tecnológica” com a China exige um equilíbrio delicado. Embora seja essencial proteger o mercado europeu, a UE deve evitar que essa postura se transforme em protecionismo disfarçado ou que comprometa as relações diplomáticas e comerciais já frágeis. A estratégia está definida, mas a sua implementação e os seus efeitos devem ser monitorizados de perto para garantir que o objetivo de segurança e resiliência não seja eclipsado por consequências indesejadas.
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