Todos secretamente sabemos que os dias internacionais disto e daquilo, mais do que uma comemoração ou lembrete do que parece importante e acreditamos que não deve ser esquecido, escorregam, de hashtag em hashtag, para uma zona de Black Friday, em que as grandes causas motivam pequenos descontos tão solidários quanto atrativos em pipocas, ramos de flores, peluches, pacotes de escapadinhas insólitas, todo o tipo de bugigangas alusivas e temáticas. O cinema, como não podia deixar de ser, não escapa a esta febre da celebração sem que saibamos muito bem o que estamos exatamente a comemorar. Esta é a primeira questão que se impõe: o que celebra o dia internacional do cinema? A frequência das salas, numa era em que a maior parte de nós vê filmes em casa? A capacidade que o cinema tem de nos emocionar, quando vemos dilemas das nossas vidas ou do nosso tempo a serem projetados contra uma parede?
Seja qual for a pergunta ou a resposta, no que nos diz diretamente respeito, se quisermos que o cinema português continue a existir, a ser capaz de produzir uma cinematografia a que possamos chamar própria, é necessário apoiá-lo. Se ainda há quem se pergunte porque é que vale a pena continuarmos a ter financiamento público numa área que dificilmente poderá garantir, pelo menos diretamente, o retorno financeiro do investimento, o problema – e a questão – não deveria colocar-se no plano económico, mas político. Por que razão deve o cinema responder a exigências diferentes daquelas estabelecidas e aceites para outras áreas sob a égide do Ministério da Cultura, relativamente às quais o benefício público jamais é questionado sob o prisma da mera rendibilidade ou, se preferirmos, do lucro?
Admitindo que o cinema é uma arte que existe para ser vista, a visão de que o seu valor equivale aos resultados de bilheteira, invertendo os termos, somos obrigados a constatar que ela não é só económica, como também política. Não se trata, pois, de um balanço de mercearia, mas daquilo que acreditamos ser necessário proteger e fomentar. Garantir que podemos continuar a construir uma imagem de nós próprios, inversa, portanto, aos padrões da generalização, a assegurar a possibilidade de existência de uma diversidade de visões críticas, por consideramos que a construção de pontos de vista à margem do pensamento único, consensual e unidirecional é um valor fundamental para a nossa cultura – melhor seria dizer, para a democracia –, implica podermos ver-nos ao espelho da complexidade de possibilidades humanas e culturais.
É por isso que, se não quisermos transformar o cinema português numa agência de prestação de serviços para grandes produções internacionais, num décor solarengo com mão de obra barata, é preciso saber resistir ao canto das sereias que vem reavivar no imaginário de muitos, novos e velhos, o antigo (e curioso) sonho de poder haver uma indústria de cinema em Portugal, um safari ou campo de tiro onde todos seríamos operários ou figurantes. O que parecia ter ficado claro desde o início, ainda no século XIX, é que a afirmação internacional do cinema português dificilmente poderia acontecer pela via do mercado: foi esse sonho que levou Aurélio da Paz dos Reis ao Rio de Janeiro e, tendo fracassado, a regressar ao Porto para desistir de uma vez por todas do cinema e voltar a dedicar-se ao negócio mais próspero da floricultura. Abria-se e fechava-se, porventura, aí a pretensão económico-industrial do cinema português, de um modo que não diferia substancialmente – como não difere ainda hoje – do que é regra na maior parte das filmografias europeias.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.