Na sociedade digital de hoje, a figura do bonus pater familias – o “bom pai de família” que age com prudência e diligência – enfrenta desafios sem precedentes. Esta figura – quase mitológica e pináculo da perfeição – representa o modelo de comportamento responsável, servindo de referencial para avaliar a conduta de alguém no cuidado com os seus bens e no cumprimento das suas obrigações.
No entanto, no mundo digital, este conceito clássico encontra obstáculos significativos. Num ambiente repleto de riscos invisíveis, como se pode esperar que se atue de forma diligente se, muitas vezes, desconhecem os perigos a que se está exposto?
A era digital trouxe uma revolução em termos de acessibilidade à informação, mas também criou um campo fértil para novas ameaças, muitas delas disfarçadas de conveniência ou inovação tecnológica e obrigatoriamente uma ideia de conforto e utilidade. Sem noção disso, estamos constantemente a fornecer os nossos dados pessoais – muitas vezes sem entenderemos realmente o alcance dessas ações e, acima de tudo, sem percebermos como esses dados podem ser usados, manipulados, a maior parte das vezes em nosso desfavor. Aqui reside o cerne da questão: a falta de literacia digital e a opacidade do mundo online tornam extremamente difícil que qualquer pessoa, por mais cuidadosa que seja, consiga exercer a diligência que o suposto bom pai de família deve garantir.
Convenhamos que, para agir de forma diligente, é necessário compreender os riscos. No entanto, no que diz respeito à proteção de dados pessoais, grande parte dos utilizadores da internet não tem conhecimento suficiente para entender como os seus dados são recolhidos, armazenados e utilizados, nem para que finalidades. Cada clique, cada login e cada “aceitar” nos termos de serviço de uma aplicação ou website pode ter implicações profundas, mas são poucos os que realmente compreendem o que está em jogo.
As plataformas digitais, os sites de comércio eletrónico e as redes sociais recolhem uma quantidade massiva de informações sobre nós, que vão desde preferências de consumo a dados de localização, até informações financeiras e pessoais sensíveis. Muitas vezes, estes dados são partilhados com terceiros ou utilizados para alimentar complexos algoritmos de marketing e publicidade. E, no entanto, quantos utilizadores têm plena consciência disto? Quantos percebem que estão a ceder algo valioso – as suas próprias informações?
De cada vez que permite que uma aplicação do seu telefone saiba a sua localização, está a dizer a pessoas (não sabemos a quem) onde está.
Usemos exemplos concretos para facilitar: de cada vez que permite que uma aplicação do seu telefone saiba a sua localização, está a dizer a pessoas (não sabemos a quem) onde está. E isso significa que, no limite, poderá até estar a informá-los de quando está em que lugar, o que é terreno fértil para descobrir rotinas, moradas de residência, escolas onde tem as crianças.
Vamos a outro: de cada vez que publica uma fotografia do seu filho nas redes sociais, por mais garantias que empresa lhe dê de que os seus dados estão guardados, saiba que há uma probabilidade enorme de elas aparecerem em redes de pornografia infantil e tráfico de crianças – não, não é apenas nos EUA que acontece.
E temos ainda os efeitos a longo prazo – que, em alguns países como a Austrália, já levaram pais a sentar-se no banco dos réus acusados pelos próprios filhos: tudo o que está na Internet permanece na Internet. E as crianças não são propriedade nossa, apesar de serem nossos filhos. Aliás, temos por responsabilidade garantir não apenas a sua sobrevivência, mas também a sua segurança. Com responsabilidade e consciência de que a sua informação, imagem e vida nos não pertence e, como tal, não deve ser exposta. Mesmo que os seus dados sejam, alegadamente protegidos pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD).
O bonus pater familias digital, se existisse de forma realista, teria de ser alguém que compreende profundamente o estabelecido no RGPD, que sabe como os seus dados são processados, e que consegue avaliar corretamente os perigos de ceder informações pessoais. No entanto, a parca experiência da era digital vem demonstrando sempre uma vontade de as empresas retirarem vantagem do desconhecimento do utilizador. Com recurso a um excesso de complexidade técnica, aliado à falta de transparência, muitas empresas colocam o utilizador numa posição de vulnerabilidade. Não por acaso, é frequente que os utilizadores aceitem os termos e condições de serviços digitais sem tão pouco os lerem, ou, mesmo que tentem fazê-lo, muitas vezes encontram documentos longos e escritos numa linguagem jurídica que dificulta a sua plena compreensão – o que está longe de ser obra do acaso.
Ou seja, a possibilidade de as fotografias, ou as histórias que conta, ou a informação que usa sobre os seus filhos saltarem na cara de um recrutador na altura em que ele vai procurar emprego são exponenciais. Lembra-se daquele álbum de família que os seus pais, por norma, tinham em cima da mesa da sala para mostrar às visitas? Aquele que tinha fotografias embaraçosas das nossas pessoas enquanto crianças, com legendas que achávamos uma vergonha? Imagine que o seu atual chefe tinha acesso a este álbum quando o contratou. É mais ou menos isto que pode acontecer com as imagens dos seus filhos que coloca na Internet, atualmente. Podem mesmo ser um fator penalizado para eles, no futuro.
É que no cenário digital atual, os dados pessoais tornaram-se a moeda de troca mais valiosa. Desde as redes sociais até aos serviços de streaming e de comércio eletrónico, todos estão em busca dos nossos dados. Estes dados, por sua vez, são utilizados para criar perfis detalhados de cada utilizador, destinados a direcionar publicidade ou a influenciar decisões de consumo. Há, inclusivamente, quem defenda que vivemos num “capitalismo de vigilância”, onde importa mais vigiar o consumidor para prever e influenciar a sua próxima decisão económica do que realizar uma mera venda imediata de um produto. Quem não cedeu já à tentação de fornecer data de nascimento, género e gostos pessoais às Netflix ou HBO somente para não lidar com a sugestão de séries que não lhe fazem sentido? O problema é que não é apenas para isso que servem os dados.
Quem não cedeu já à tentação de fornecer data de nascimento, género e gostos pessoais às Netflix ou HBO somente para não lidar com a sugestão de séries que não lhe fazem sentido?
Mesmo os utilizadores que se preocupam com a sua privacidade e tentam proteger-se podem não ter conhecimento dos inúmeros mecanismos através dos quais os seus dados são recolhidos. A invisibilidade destes processos – e, muitas vezes, a nossa falta de paciência e capacidade para os compreendermos, é o que torna tão difícil cumprir o padrão do bonus pater familias no mundo digital. A diligência, neste contexto, não depende apenas de uma vontade de agir corretamente, mas também de uma compreensão técnica que muitos não possuem e que outros tantos agradecem e da qual beneficiam.
A tecnologia avança, hoje, a uma velocidade que ultrapassa a capacidade da maioria dos cidadãos de a compreenderem. Nós, que assinamos este artigo, incluídos em muitas das situações. Para que possam ser diligentes, os cidadãos precisam de saber como os seus dados pessoais são tratados, ou seja, como são recolhidos, utilizados, para que finalidades concretas e que medidas podem tomar para permitir ou impedir esses tratamentos. Não há, no entanto, escolha informada sem conhecimento e transparência.
A proteção de dados não pode ser uma responsabilidade exclusivamente atribuída ao utilizador final, que muitas vezes está numa posição de clara desvantagem em relação às empresas. São mesmo as empresas que têm o dever de tornar os seus processos mais transparentes, e as entidades reguladoras devem ser reforçadas com meios financeiros e humanos para que a proteção de dados se torne uma prioridade real, e não apenas uma questão de conformidade superficial.
Sem isso, estamos todos a exigir demais do bonus pater familias na era digital. Que tem, ainda assim, de ser responsável. Mas facto é que uma maior transparência por parte das empresas e uma melhor educação digital, o ideal de um comportamento diligente online permanece, na maioria das vezes, uma mitologia de perfeição como sempre foi associada ao nosso querido “bom pai de família”.