Humanos recém-nascidos preferem claramente bebidas com elevadas quantidades de açúcar, especialmente se forem mais doces que o sabor conferido pela lactose, açúcar presente no leite materno.
A nossa capacidade de reconhecer “doce” é significativamente mais sensível que a capacidade de reconhecermos “amargo”, em várias ordens de grandeza. Do ponto de vista estritamente evolutivo, a intensidade de doçura seria indicativa de melhor fonte de energia, ao passo que acidez estaria habitualmente associada a “venenos”, alimentos potencialmente tóxicos.
O interesse pela compreensão de como se produzia o sabor “doce” e como este seria reconhecido e identificado ao nível celular é uma área de investigação com vários séculos. Somente no início do século XXI se conseguiu identificar o “recetor para a doçura”. O reconhecimento de substâncias doces ocorre ao nível das papilas gustativas, na língua, embora os seus recetores estejam presentes ao longo do trato gastrointestinal, no epitélio nasal e ainda nos testículos. A presença de recetores para substâncias doces no trato gastrointestinal crê-se estar relacionada com a sensação de saciedade. Também fascinante são as diferentes perceções entre espécies do sabor doce. A título de curiosidade, os gatos domésticos não conseguem sentir a sensação de doçura.
Mas que tem tudo isto a ver com o cancro? Consumir alimentos doces predispõe para o desenvolvimento de cancro? Alimentos ricos em açúcares podem acelerar a progressão do cancro?
O consumo exagerado de açúcares pode, de forma indireta, contribuir para a criação de um ambiente metabólico favorável ao desenvolvimento de certos tipos de cancro. Açúcares em excesso levam à sua acumulação, porque o nosso corpo não os consegue degradar, o que pode contribuir para excesso de peso e à obesidade
As células precisam de açúcares (fundamentalmente sob a forma de glucose) como fonte de energia. Em células normais, a absorção de glucose e a sua degradação resulta na produção de energia nas “fábricas energéticas” que são as mitocôndrias. Otto Warburg, nos anos 20 do século XX, descobriu que as células de cancro conseguem produzir energia mesmo não recorrendo à atividade mitocondrial. Ou seja, têm capacidade de usar a glucose na ativação de outras vias metabólicas que produzem energia, mas também de outros componentes essenciais à rápida divisão celular, como amino ácidos ou mesmo lípidos.
Terá sido aqui que a dúvida surgiu e que tem inquietado profissionais (cientistas, médicos, nutricionistas) e público em geral há décadas: se as células de cancro se dividem descontroladamente, precisam obrigatoriamente de mais glucose (mais açúcares)? A resposta simples é: não. Mas, na verdade, é um pouco mais complicado de explicar.
Como as células de cancro precisam de outros nutrientes (como os amino ácidos e gorduras, por exemplo), podem muitas vezes não utilizar glucose, de todo. Mesmo como fonte de “açúcares”, o que se percebeu é que diferentes células de cancro conseguem utilizar diferentes origens, consoante a disponibilidade ambiental dos mesmos.
Ou seja, uma dieta pobre (eliminando, inclusive) em açúcares, poderá reduzir o risco de desenvolver um cancro? Ou ainda, eliminando o consumo de açúcares poderá reduzir a progressão de um cancro? Estudos epidemiológicos recentes demonstram categoricamente que não: a simples redução de consumo de açúcares não traz qualquer redução na incidência do cancro. No que aos pacientes oncológicos diz respeito, em institutos de investigação e em hospitais que se especializam no tratamento do cancro, encontramos recomendações para que não reduzam o seu consumo de açúcares, porque isso pode deteriorar o seu estado geral. As nossas células normais precisam de glucose, pelo que a completa falta desse nutriente pode acarretar problemas sérios.
Mas há que realçar um aspeto importante em tudo isto. O consumo exagerado de açúcares pode, de forma indireta, contribuir para a criação de um ambiente metabólico favorável ao desenvolvimento de certos tipos de cancro. Açúcares em excesso levam à sua acumulação, porque o nosso corpo não os consegue degradar, o que pode contribuir para excesso de peso e à obesidade. Estes, relacionadas com a criação de um ambiente geral metabólico que se caracteriza por acumulação de gorduras e pela produção de fatores sistémicos como certas hormonas, pode favorecer o desenvolvimento de vários tipos de cancro, incluindo os hormono-dependentes, como sejam certos tipos de cancro da mama ou o cancro da próstata. Ou seja, se aumentarmos de peso e acumularmos gordura, isso sim, aumenta o nosso risco de poder desenvolver vários (estudos recentes indicam uma dúzia!) de cancros.
A nossa sensação de “doce” é transmitida por recetores específicos que foram selecionados evolutivamente: a maioria das pessoas e dos animais gostam de alimentos doces. Mas o excesso de consumo deste tipo de alimentos pode causar desequilíbrios metabólicos, resultando no aparecimento de algumas doenças e inclusive certos tipos de cancro.
Aquele bolo ou sobremesa é “demasiado” doce? Essa sensação poderá resultar da sobre-ativação ou mesmo saturação dos receptores específicos. E é um sinal para evitar o consumo exagerado e sistemático desses alimentos.
Se este assunto da alimentação e cancro vos deixa curiosos, chamo a atenção para o evento Semana da Mama 2024, onde se vai discutir este tema e muitos outros tópicos. Durante cinco dias – de 15 a 19 de outubro – num espaço montado para o efeito na Alameda da Universidade, vai decorrer a Semana da Mama, promovida pela Fundação GIMM. Descubram o programa em www.semanadamama.pt
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