Cientistas suíços, num estudo publicado na prestigiada revista científica Nature, em 2023, sugerem que a capacidade das células tumorais formarem metástases aumenta na fase de repouso (sono) dos doentes. Esta ideia sugere que controlar a altura do dia da administração de farmácos anti-tumorais pode permitir maior eficácia terapêutica. Este estudo surge no seguimento de múltiplas evidências que sugerem, afinal, que o ritmo circadiano desempenha um papel fundamental no cancro e no tratamento de doentes oncológicos.
Mas afinal o que são ritmos circadianos? São oscilações de 24 horas que controlam uma variedade de processos biológicos, incluindo a divisão celular, o metabolismo e outras funções essenciais para o funcionamento normal dos diferentes orgãos e tecidos. O ritmo circadiano é controlado pela ação de “relógios moleculares”, nos quais diferentes componentes moleculares cooperam entre si, alterando a respetiva quantidade e atividade, com uma periodicidade de cerca de um dia (24 horas). Num organismo, tais relógios moleculares garantem o controlo temporal da função dos diferentes órgãos e tecidos, através da regulação de programas moleculares específicos. Ou seja, temos (os seres humanos) relógios moleculares a regular as nossas funções gerais (como respirar, os batimentos cardíacos em repouso, etc.) e outros que regulam a função de cada órgão.
Alterações nos ritmos circadianos, nomeadamente as alterações nos padrões de sono, são uma característica proeminente das sociedades modernas. Cada vez mais se discute a importância do sono de qualidade para o nosso bem-estar mental e se percebe a sua importância em outras doenças. Por outro lado, a incidência de cancro tem aumentado, o que tem levado investigadores a questionar se alterações no ritmo circadiano poderão aumentar o risco de cancro.
Observou-se há anos que trabalhos realizados por turnos (denominados por “turnos do cemitério” ou graveyard shifts, em inglês), ao inverter o ritmo circadiano, estariam associados a um risco aumentado de desenvolver cancro
Do ponto de vista epidemiológico, observou-se há anos que trabalhos realizados por turnos (denominados por “turnos do cemitério”, ou graveyard shifts em inglês), ao inverter o ritmo circadiano, estariam associados a um risco aumentado de desenvolver cancro. Na verdade, vários estudos concluíram que quanto mais prolongados forem os períodos de trabalho por turnos (horas por semana ou por mês), maior esse risco. O mesmo acontece com o jet lag, que surge com a discrepância entre o “relógio molecular (biológico)” individual e a exposição a ciclos ambientais (luz-escuridão) alterados. O jet lag crónico (repetido frequentemente) é, assim, outro fator ambiental que se julga ter um papel potencialmente carcinogénico.
Estudos realizados no laboratório de Tyler Jacks (um cientista americano muito relevante na investigação dos mecanismos que regulam os ritmos circadianos) revelaram, em modelos animais e em humanos, que perturbações fisiológicas (jet lag) ou genéticas do ritmo circadiano aumenta a incidência de cancro de pulmão. Dois, apenas dois, genes (o gene PER, de “período” e o gene BMAL1) parecem regular uma complexa rede de interações moleculares envolvidas na criação e manutenção de ritmos circadianos. Consequentemente, perturbações na função destes genes (e proteínas por eles codificadas) resulta em alterações moleculares que – ao perturbar o ritmo circadiano do organismo – ativam processos envolvidos no desenvolvimento de cancros, como a divisão celular e certos tipos de metabolismo.
A importância do controlo do ritmo circadiano tem impacto na incidência e na forma como o cancro se desenvolve. Não menos importante, foi também demonstrado que a eficácia de terapêuticas usadas para o tratamento de diferentes tipos de cancro depende da altura do dia em que os fármacos são administrados. Esta observação (da importância da hora de administração dos tratamentos) foi confirmada na administração de fármacos mais “convencionais” como a maior parte dos agentes quimioterapêuticos, mas também na resposta a tratamentos imunomoduladores como as mais recentes formas de imunoterapia.
O papel do ritmo circadiano (e das suas alterações) no cancro está amplamente demonstrado, quer ao nível da susceptibilidade (maior incidência perante alterações crónicas do ritmo circadiano), quer da progressão tumoral (incluindo a formação de metástases) e também da resposta a diferentes formas de terapia.
Podemos assim afirmar que estamos – investigadores e médicos oncologistas – a lidar com uma “nova” dimensão (o tempo) do cancro.
Nota: este artigo foi conceptualizado com a Ana Cavaco, também investigadora no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes