Quando António Guterres foi eleito secretário-geral da ONU, os jornais espanhóis desfizeram-se em elogios, não apenas ao ungido novo homem forte das Nações Unidas, em Nova Iorque, mas também à eficácia da diplomacia portuguesa e, genericamente, à classe política nacional. Não foi a última vez que jornais como o El País se desdobraram em explicações sobre os motivos pelos quais os políticos espanhóis comparavam mal com os portugueses: durante a pandemia, a imprensa espanhola elucubrou extensamente sobre as diferenças entre o apparatchik político que liderava o Ministério da Saúde de Espanha e a homóloga Marta Temido, uma especialista conceituada, que liderava com galhardia o combate à pandemia, em Portugal, com resultados que, ao tempo, estavam longe de se verificar em Espanha. Entre os atributos reconhecidos por nuestros hermanos aos dirigentes portugueses, a extraordinária aptidão, jamais vista em Espanha, para falarem línguas estrangeiras. E Portugal dispunha de uma diplomacia profissional e estável, não dependente dos ciclos político-partidários, que remava para o mesmo lado quando se tratava de colocar um luso em lugares internacionais de influência. O El País destacava que Marcelo Rebelo de Sousa, em seis meses de mandato, já tinha apertado mais mãos de líderes mundiais do que o então presidente do governo espanhol, Mariano Rajoy, depois de cinco anos no poder.
Uma das características internacionalmente reconhecidas à diplomacia portuguesa voltou a emergir no processo que levou à mais do que provável indigitação de António Costa como presidente do Conselho Europeu (escrevíamos este texto na terça-feira à tarde, quando acabava de ser anunciado que essa nomeação estava mesmo garantida): a convergência de esforços, estranhos aos alinhamentos políticos internos, para alcançar um objetivo internacional. Com efeito, na própria noite eleitoral de 9 de junho, Luís Montenegro anunciou o apoio incondicional à candidatura de António Costa, o adversário político de ontem – e o Governo português parece ter movido todos os esforços para alcançar esse desiderato –, mesmo dando de barato que o mérito principal pertence ao ex-primeiro-ministro, que andou a trabalhar para isto durante anos. Tipicamente, António Costa declarou, pouco depois, que nem sequer lhe passaria pela cabeça aceitar o lugar se o Governo do seu país estivesse contra…
Mas este desfecho, que poderá ser confirmado entre hoje e amanhã, na decisiva reunião do Conselho, não está isento de escolhos. Em 2017, António Guterres, o homem do diálogo, parecia ser a figura certa no lugar certo para construir pontes e mudar o mundo. Sabemos o que aconteceu: a primeira coisa com que se deparou foi com Donald Trump na Casa Branca… António Costa surge para construir novas pontes entre os 27. Não foi debalde que conseguiu estabelecer, por exemplo, com o improvável Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro e expoente de um dos grupos europeus de extrema-direita, uma relação amistosa e até próxima, e mesmo que Orbán se tenha insurgido contra esta escolha, em voz alta, não deixarão de conversar, em voz baixa… Mas Costa aparece num momento em que está iminente a viragem de França à ainda mais temível extrema-direita de Marine Le Pen, cujo partido pode tomar a dianteira já na primeira volta das legislativas francesas, que ocorrem dois dias depois da indigitação de Costa. O ex-primeiro-ministro, conhecedor da legislação europeia, só por uma unha negra não conseguiu evitar o Brexit, depois de ter arquitetado, numa histórica maratona do Conselho, um pacote de medidas que, no limite da legalidade, podiam ter impedido a saída dos britânicos. Mas não impediram. E não será ele que irá desatar o nó da guerra na Ucrânia, o maior desafio enfrentado por um presidente do CE desde que, pelo Tratado de Lisboa, o lugar foi recriado, deixando de ser ocupado por um dos primeiros-ministros em exercício, e passando a sê-lo por uma personalidade a tempo inteiro.
Esta vitória de António Costa surge, ironicamente, depois de um parágrafo num comunicado da PGR quase ter acabado com a sua carreira política. Paradoxalmente, o Ministério Público fez-lhe o favor de o projetar para um lugar que aprecia muito mais do que o de primeiro-ministro de Portugal. Este epílogo não deixa de ser uma derrota de alguns atores do poder judiciário que, nos timings mais críticos, fizeram política, no sentido de o desviar do seu castelo.
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