A polémica em torno do 25 de Novembro é um bom exemplo do estado do debate público nacional. Concretamente, a data corresponde ao fim do Verão Quente e do processo revolucionário português, mas os motivos por detrás do facciosismo – e até do revisionismo histórico – com que o assunto tem sido discutido não são da nossa competência exclusiva, para o bem e para o mal. É fácil ver que o tom e a forma como a contenda tem sido desenvolvida se devem, em muito, à ascensão dos partidos de direita radical em vários países europeus e, sobretudo, ao argumentário legitimado pelo seu êxito nas urnas, a que o cientista político Vicente Valentim brilhantemente chamou “fim da vergonha”.
Compreende-se que a polémica sobre o significado do 25 de Novembro tenha sido reavivada com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. A data que pôs fim à ditadura é o 25 de Abril e, se quisermos ser sérios, não faz sentido torná-la equivalente ao 25 de Novembro – que, ainda assim, teve um papel fundamental na transição para a democracia. Logo em abril de 2023, em entrevista à VISÃO, Maria Inácia Rezola, historiadora e comissária executiva das celebrações, disse não ver a data como “uma história de união ou desunião”. Na opinião de Rezola, “é impossível falar do 25 de Abril sem falar do 25 de Novembro, do 11 de Março, do 28 de Setembro ou do 25 de Abril de 1975, a data das primeiras eleições livres”.
Em novembro de 2023, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, foi o primeiro a cavalgar a onda, ao anunciar comemorações oficiais do 25 de Novembro na capital. Os nossos leitores mais fiéis hão de recordar-se, pois a VISÃO aproveitou a ocasião para publicar um artigo de memória, assinado pelo Filipe Luís, que fez a capa da nossa edição de 12 de outubro.
A estratégia de Moedas até poderia fazer sentido, numa lógica de, à direita do espectro partidário, não deixar o exclusivo do tema ao Chega, o qual, já se sabe, é especialista em descontextualizar, subverter e truncar, para apresentar a sua versão do passado e, claro, colher benefícios no presente. A linha seguida por Moedas, porém, não só não corresponde à verdade histórica como é até oportunista, na medida em que tenta apropriar-se de um acontecimento. Se formos honestos, a ser de alguma força partidária, o 25 de Novembro é do PS, do Grupo dos Nove (Ernesto Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Canto e Castro, Vítor Crespo, Costa Neves, Vítor Alves, Franco Charais e Sousa e Castro) e de Ramalho Eanes, que liderou as operações militares das forças moderadas.
Isto mesmo recordou o deputado Francisco Assis, na Assembleia da República, na semana passada, a propósito da votação de três propostas (a do CDS, para que a data seja comemorada anualmente, a da Iniciativa Liberal, para que o programa dos 50 anos do 25 de Abril inclua também o 25 de Novembro, e a do Chega – a única que não foi aprovada –, para que a data passasse a ser feriado nacional). “Não há personalidade política e civil mais ligada ao 25 de Novembro do que Mário Soares e o PS é – e será sempre – o partido de Mário Soares”, afirmou Assis.
As dinâmicas da História, que nunca é a preto e branco, são demasiado complexas para serem transformadas num dos slogans que a direita radical tanto gosta de apregoar. Nos 50 anos da Revolução dos Cravos, já vai sendo tempo de todos os democratas olharem para 1974 como um momento associado sobretudo à liberdade. É tão absurdo a esquerda considerar o 25 de Abril como sendo seu como a direita – que infelizmente continua a sentir-se desconfortável com um cravo na lapela – querer disputar a propriedade do 25 de Novembro com o Chega. E, já agora, nada disto aconteceria se o PS não deixasse (por razões que a própria razão desconhece…) os seus créditos por mãos alheias.
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