A sessão solene que, na Assembleia da República, assinalou os 50 anos do 25 de Abril decorreu sem sobressaltos, embora não seja possível dizer que tenha sido muito entusiasmante. A ideia que fica é que foi pensada da mesma maneira que se pensou a do 49º aniversário da Revolução dos Cravos. E exatamente da mesma maneira que, no próximo ano, se pensará a do 51º aniversário… Isto não é uma crítica; sabemos bem que a democracia também é feita de rotinas, rituais e preceitos a cumprir. É apenas um lamento – e, por isso mesmo, um lamento sem grande importância – de que, no meio século do regime democrático, não tenha havido vontade de romper com uma certa monotonia característica destas cerimónias.Foi uma cerimónia digna, é certo, e isso, no fundo, é o mais importante. Teve dois momentos altos. Em primeiro lugar, Rui Tavares: não só esteve à altura da ocasião como fez jus à sua fama de excelente tribuno. Proferiu um discurso muito bonito, elegante, simples e verdadeiro. “A razão pela qual o 25 de Abril deu a volta ao mundo é porque foi a mais bela revolução do século XX, e é nossa”, disse o líder do Livre. A frase é galvanizadora e tem potencial para ser citada no futuro, noutros contextos. Vai marcar.Depois disso, foi a vez de brilhar José Pedro Aguiar-Branco, que felizmente já arrumou com a trapalhada da sua eleição (à qual merecia ter sido poupado, diga-se de passagem). O presidente da Assembleia da República elogiou a coragem dos Capitães de Abril e evocou Mário Soares, “a personificação maior de um espírito de bom senso e sabedoria a que hoje, em política, chamamos moderação”, afirmou. Além disso, Aguiar-Branco fez o que nunca tinha sido feito: lembrou as quatro vítimas mortais do dia da Revolução. Os familiares de Fernando dos Reis, Fernando Gesteiro, João Arruda e José Barnetto – mortos pela PIDE quando se manifestavam em frente à sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso – estiveram presentes no hemiciclo. Um dos “grandes mitos” do 25 de Abril é o de que se tratou de “uma revolução sem sangue”, disse o social-democrata. À tarde, num ato inédito que também merece ser registado, José Pedro Aguiar-Branco juntou-se ainda ao desfile na Avenida da Liberdade. Não se sabe quantos estiveram presentes na manifestação, mas foram muitos, muitos mil! António Granado, professor da Universidade Nova e antigo jornalista do Público, instou as operadoras de telecomunicações para que fizessem uma estimativa de quantos ali estiveram reunidos. Como termo de comparação, há quem fale no milhão que, em 2012, saiu à rua para protestar contra o aumento da Taxa Social Única (TSU), anunciada então pelo governo de Pedro Passos Coelho.
Os mais velhos recordam igualmente o primeiro 1º de Maio, que, em 1974, juntou centenas de milhares de pessoas nas ruas de todo o País. Entre autoridades policiais, Comissão das Comemorações dos 50 anos e Associação 25 de Abril, é pena que não se consiga chegar a um valor aproximado. Os que estiveram presentes provavelmente dispensam estatísticas; bastou-lhes observar a energia: viram-se as carruagens do metropolitano a abarrotar, umas a seguir às outras; viram-se os telefones a deixar de funcionar, sem sinal; viram-se as horas que se demorou a chegar ao fim do primeiro quarteirão. Também se cruzaram muitos que, num 25 de Abril “normal”, não costumam descer a Avenida. Os amigos que não se encontravam há anos, as crianças às cavalitas dos pais, os adolescentes, os velhos de cravo ao peito, a alegria contagiante, as lágrimas, os sorrisos e os abraços dos reencontros felizes.Para quem participou, a mensagem foi clara (perante o desconforto de uma parte da direita em celebrar a data, Juventude Social-Democrata e Iniciativa Liberal, que se juntaram ao desfile, merecem um louvor). Saímos do sofá e das redes sociais, estamos aqui, viemos comemorar Abril e fazer a festa. Mas não só. Num tempo de radicalização e de vagas autoritárias, os que desceram a Avenida fizeram-no para dizer, alto e bom som, que não têm saudades do antigamente, que estão dispostos a defender a liberdade conquistada em 1974, os valores e os princípios democráticos. São uma imensa maioria que, até agora, tem estado em silêncio, mas que, na semana passada, se sentiu mobilizada e quis ir para a rua gritar palavras de ordem. Quando lhes perguntarem “onde estiveste no 25 de Abril de 2024?”, vão responder: “Na Avenida, onde a liberdade se sobrepôs ao medo e ao ódio.”
Breviário
Herança colonial
A resposta do Governo às questões levantadas pelo Presidente da República sobre a herança do passado colonial português é sensata, na medida em que chama a atenção para a verdade histórica e para a reparação que tem vindo a ser feita, nomeadamente através de programas de cooperação dirigidos aos países do antigo Império. Ignora, porém, a restituição de obras de arte e, sobretudo, o inventário de todo o património com origem nas ex-colónias, iniciado pelo ex-ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, com o apoio de uma boa parte dos historiadores e museólogos (incluindo a atual titular da pasta, Dalila Rodrigues). O trabalho é para continuar ou, pelo contrário, vai ser deitado para o lixo?