A expressão de recetores hormonais, nomeadamente no cancro da mama, tem importância para o diagnóstico e prognóstico dos cancros. Por “detrás” desta determinação aparentemente simples (expressão de recetores de estrogénio em células do cancro da mama), há uma longa história médica e científica que reporta ao final do século XIX e início do século XX.
Ernest Starling é – como uma pesquisa atenta assim o indica – uma pessoa incontornável nesta história. Numa parceria bastante próxima com William Bayliss, seu cunhado, Starling investigou as secreções pancreáticas durante o final do século XIX. Durante muito tempo, a comunidade científica e médica considerava que a função do pâncreas era totalmente controlada pelo sistema nervoso. As experiências de Starling e Bayliss vieram mostrar que sempre que alimentos ou ácido eram colocados no duodeno (região do intestino) uma substância é libertada no sangue e leva às secreções pancreáticas. Investigaram a fundo uma possível ligação ao sistema nervoso, concluindo que esta estimulação da ação pancreática se devia a uma nova forma de “comunicação à distância” exercida por substâncias secretadas, que Starling denominou por “secretinas” e mais tarde, em 1905, foram denominadas globalmente por “hormonas”. A palavra “hormona” deriva do grego, significa “promover o movimento”, e terá sido utilizada por Starling para denominar a estimulação do pâncreas (neste contexto hormona é entendida como um “estímulo”). A palavra hormona passou a ser utilizada para definir substâncias químicas que são capazes de estimular órgãos à distância, mesmo quando libertadas em quantidades muito reduzidas.
As descobertas de Starling e Bayliss (e de outros cientistas contemporâneos) resultoaram no começo formal do estudo de uma nova área de investigação médica e científica: a endocrinologia. Starling foi, na verdade, essencial para a transformação dos cursos de Medicina, contribuindo de forma decisiva para a inclusão no programa de laboratórios e de treino laboratorial.
A maioria dos cancros da mama expressam recetores hormonais (e a maior parte desses expressa os recetores dos estrogénios), o que significa que as células que os constituem se assemelham às células normais da glândula mamária, onde os estrogénios exercem as suas funções
O dogma que estabelecia uma ligação entre o sistema nervoso e o controlo da função de diferentes órgãos teve consequências dramáticas para a saúde de milhares de mulheres no final do século XIX e início do século XX. O que é explicado pelas descobertas de Starling e outros, como Josef von Halban, foi inicialmente abordado com uma lógica que se veio a verificar estar errada. A remoção dos ovários de várias dezenas de milhares de mulheres jovens, nomeadamente para controlo da “histeria”, anorexia nervosa e ansiedade, aconteceu de forma sistemática na Europa e América do Norte. Como era estabelecido na altura, se o sistema nervoso controlava a função de todos os órgãos, removendo os ovários (órgãos que na altura eram considerados centrais na regulação do comportamento da mulher) seria uma forma de reestabelecer e corrigir problemas de índole nervosa. Este tipo de prática, abandonada após estudos que vieram revelar a real função dos ovários, resultou na menopausa precoce em milhares de mulheres jovens, com consequências sérias para a sua saúde. Josef von Halban realizou estudos que demonstraram que os ovários libertavam um químico em particular (o estrogénio) diretamente para a corrente sanguínea. Estudos realizados em porquinhos-da-índia demonstraram que pequenos pedaços dos ovários – mesmo se colocados noutros locais do corpo – libertavam uma substância que promovia a aquisição de características associadas à puberdade, demonstrando o papel da hormona que viria a ser denominada por estrogénio (os primeiros estrogénios viriam a ser isolados e purificados anos mais tarde).
É neste ambiente científico, após serem identificadas e caracterizadas várias hormonas, incluindo os estrogénios, que Elwood Vernon Jensen realiza os seus estudos que culminaram na descoberta dos recetores dos estrogénios em 1958. Essa descoberta foi reconhecida como fundamental para a comunidade científica – tendo sido distinguida com o prestigiado Prémio Lasker em 2004 – e contribuiu para uma melhor compreensão da função das hormonas como estimulantes do crescimento celular. É precisamente essa função, exercida através da estimulação dos recetores específicos descobertos por Jensen, de estimular o crescimento celular, que está subjacente à função dos estrogénios no cancro da mama.
A maioria dos cancros da mama expressam recetores hormonais (e a maior parte desses expressa os recetores dos estrogénios), o que significa que as células que os constituem se assemelham às células normais da glândula mamária, onde os estrogénios exercem as suas funções. Para além desta característica, a presença de receptores específicos levou à identificação de alvos terapêuticos: a terapia denominada por “hormonal” é precisamente um tipo de terapia destinada a bloquear a produção de hormonas ou os sinais transmitidos pelos recetores hormonais, limitando o crescimento das células cancerígenas.
As descobertas científicas contribuem para percebermos como funciona o nosso corpo, para revelar detalhes funcionais entre diferentes órgãos e a comunicação entre eles, e para identificar possíveis alvos terapêuticos para tratar tipos particulares de cancro, como os cancros “hormonais”.
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