Há a invasão da Ucrânia, há Governo novo, há eleições europeias para breve, há “os problemas das pessoas” (primeiro-ministro dixit). E, no entanto, a apresentação do livro Identidade e Família – amplificada pelas declarações de Pedro Passos Coelho – é que tem dado pano para mangas. Como se se tratasse de uma urgência nacional, perdoe-se-me o olhar cínico. Não encontro, confesso, grande interesse no tema. Também não me posiciono do lado dos defensores nem dos opositores, para usar a linguagem das trincheiras das guerras culturais. Valham-nos os humoristas, os profissionais e os amadores, que têm aproveitado – e bem! – para produzir bom material de risota. Livros daqueles sempre houve e sempre haverá, haja quem os escreva, quem os publique e, já agora, quem os compre. Há décadas que figuras como Paulo Otero e João César das Neves advogam aquelas ideias acerca do casamento, do aborto e do papel da mulher. Representam uma minoria, em Portugal, assim como na esmagadora maioria dos países desenvolvidos. Num tempo de crescente intolerância, é necessário sublinhar: são livres de o pensar e, ainda mais, de o dizer – da mesma maneira que os que deles discordam são inteiramente livres de criticar. Muito mais haveria a discorrer sobre a encruzilhada em que se encontra a direita democrática, com a ascensão das direitas radicais, mas não seguimos por aí. Uma última nota, que me parece vir a propósito: não deixa de ser irónico que o PSD tenha sido fundado por um homem que, quando foi primeiro-ministro, exigia que a mulher – com quem vivia, mas com quem não era casado – fosse recebida em ocasiões oficiais com toda a dignidade. Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro eram, de facto, pessoas muito à frente do seu tempo.
O episódio do livro apresentado por Passos Coelho serve de mote para falar de outra questão: mais preocupantes do que as posições de Otero e de César das Neves (espíritos, para todos os efeitos, nascidos e criados no tempo da outra senhora) são os vários estudos que dão conta de que, na chamada Geração Z, elas estão mais progressistas e eles, mais conservadores. Recentemente, a The Economist analisou dados de sondagens de 20 países, a partir do Inquérito Social Europeu, do Inquérito Social Geral Americano e do Inquérito Social Coreano. Há duas décadas, havia pouca diferença entre homens e mulheres entre os 18 e os 29 anos (numa escala de 1 a 10, de muito liberal a muito conservadora). Em 2020, de acordo com os mesmos indicadores, a diferença já era de 0,75. Dito de outra forma, os homens são apenas ligeiramente mais propensos a descreverem-se como liberais (dois pontos percentuais), enquanto as mulheres se inclinam muito mais para a esquerda do que para a direita (27 pontos percentuais).Há quem relacione esta tendência com o movimento #MeToo. Num artigo publicado no final de janeiro, John Burn-Murdoch, colunista do Financial Times, citava estes dados, falando das diferentes visões do mundo entre rapazes e raparigas. “O movimento #MeToo foi o gatilho principal, dando origem a valores ferozmente feministas entre as jovens mulheres que se sentiram capazes de falar contra as injustiças de longa data”, argumenta Burn-Murdoch.E, em períodos eleitorais, estes valores e atitudes refletem-se também nas opções políticas? No caso português, até há muito pouco tempo, não era possível afirmar que homens e mulheres votavam de maneira distinta. Porém, um estudo de João Cancela e Pedro Magalhães, realizado a partir da sondagem à boca das urnas feita pela Pitagórica nas legislativas de 2022, indicia, pela primeira vez, uma assimetria de género. “Portugal parecia mesmo uma das poucas – a única? – democracias europeias onde isso sucedia. O gender gap moderno – o voto feminino mais à esquerda que o voto masculino – não tinha chegado ainda a Portugal”, escreviam.
Não sou académica e, por isso, não me meto pelos caminhos ínvios das afirmações sem consistência científica. Sigo os trâmites do jornalismo, que me obrigam a pesquisar e a recolher dados, a verificar, verificar, verificar. E observo – nem sempre me agrada o que vejo (“se podes olhar, vê; se podes ver, repara”, dizia José Saramago, na epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira). Além disso, numa esfera estritamente pessoal, sou mãe de dois rapazes e, também por eles, esta deriva conservadora me inquieta. Os meus filhos são livres de ter as ideias que entenderem, mas com grande tristeza aceitaria visões moralistas e ressentidas, indiferentes às desigualdades e, sobretudo, pouco respeitadoras dos outros. O problema não é os mais velhos terem ideias envelhecidas. O problema é os mais novos – mais educados, mais viajados, mais privilegiados – preferirem ideias desajustadas do tempo em que vivem.
Breviário
Bispos unânimes
Os ciclos mediáticos são o que são. E, portanto, os abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa já saíram do radar, embora não seja possível dizer que o assunto tenha morrido. Passou mais de um ano após o corajoso relatório de Pedro Strecht, cuja divulgação evidenciou uma reação tímida da hierarquia da Igreja face ao drama dos abusos e ao sofrimento humano. A Comissão Episcopal Portuguesa, o órgão que reúne todos os bispos, acaba de aprovar a atribuição de compensações financeiras às vítimas que as exijam. E é de louvar que, depois de tantas divisões internas, tenha conseguido fazê-lo por unanimidade.
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