O novo ano que agora inicia marca uma fase importante na investigação, diagnóstico e tratamento do cancro. As últimas décadas, mesmo com pandemia e outras situações disruptivas, resultaram numa melhoria quase generalizada na deteção precoce, no diagnóstico molecular detalhado e no aparecimento de tratamentos mais eficazes e – regra geral – menos tóxicos para tratamento de diferentes tipos de cancro. Um dos avanços mais recentes e significativos diz respeito ao aparecimento de fármacos denominados “agnósticos” cujo mecanismo de ação visa bloquear alterações moleculares que podem ser comuns a diferentes cancros, em vez de serem utilizados para tratar o cancro A ou B. Dentro deste grupo de fármacos inserem-se diferentes formas de imunoterapia, por exemplo. Ou seja, terapias que podem ser utilizadas para tratar diferentes tipos de cancro, desde que os mesmos apresentem características moleculares comuns. Para além de representarem uma mudança de paradigma, científico e médico, as terapias “agnósticas” são amplamente eficazes, mesmo no tratamento de cancros habitualmente agressivos e difíceis de tratar.
Independentemente da bem-sucedida utilização de fármacos agnósticos, a verdade é que a heterogeneidade e diversidade biológica do cancro é um dos maiores desafios que investigadores e clínicos têm de gerir. A evolução do cancro, sob efeito de terapias diversas, pode resultar na seleção de características (“clones”) celulares e moleculares progressivamente mais difíceis de tratar. Conhecer em detalhe essa diversidade biológica e molecular é essencial para monitorizar respostas terapêuticas, por exemplo. Mas para além da diversidade do cancro, a diversidade do hospedeiro tem recebido importância crescente, nos últimos anos.
Estudos recentes publicados no Reino Unido demonstraram que homens negros têm maior incidência de cancro da próstata, enquanto indivíduos asiáticos têm maior incidência de cancro do intestino. A incidência de cancro da mama e da pele (concretamente, o melanoma) são por sua vez mais elevadas em pessoas caucasianas
Falamos de diversidade biológica, que impacta quer na incidência de determinados cancros, quer no percurso clínico dos mesmos. Exemplos óbvios: a incidência de cancro da próstata é restrita a pessoas do sexo masculino, ao passo que o cancro do cólo do útero afeta apenas pessoas do sexo feminino.
Há, no entanto, reconhecidas diferenças entre indivíduos do sexo masculino ou feminino, nomeadamente no envolvimento do sistema imunitário e na resposta a fármacos que atuam a esse nível. Estudos recentes demonstram precisamente a existência de diferenças ao nível do sistema imunitário, entre pacientes masculinos e femininos com glioblastoma (tumor cerebral). Mas há diferenças biológicas, associadas muitas vezes a diferenças socioeconómicas, que têm sido reconhecidas como impactantes para o desenvolvimento do cancro e da sua progressão (incluindo uma melhor ou pior resposta terapêutica). Em concreto, as diferenças de incidência de certos cancros entre indivíduos caucasianos e negros ou asiáticos (incluindo do Sul da Ásia e do Extremo Oriente) refletem diferenças biológicas importantes. Assim, estudos recentes publicados no Reino Unido demonstraram que homens negros têm maior incidência de cancro da próstata, enquanto indivíduos asiáticos têm maior incidência de cancro do intestino. A incidência de cancro da mama e da pele (concretamente, o melanoma) são por sua vez mais elevadas em pessoas caucasianas. Há imediatamente sugestão de determinados comportamentos, nomeadamente ao nível da dieta e do microbioma dos indivíduos afetados, que pode explicar a maior incidência de certos cancros. Mas o que tem sido progressivamente reconhecido é o pior “outcome” (desfecho) entre pessoas de etnias diferentes, quando diagnosticadas com “o mesmo tipo de cancro”. Estudos americanos recentes vieram demonstrar que a mortalidade de pessoas negras com cancro é significativamente mais elevada que a de indivíduos caucasianos ou asiáticos (e, no caso dos EUA, também as populações designadas por “latinos”). Maior mortalidade reflete naturalmente uma série de fatores, que têm sido amplamente discutidos pela comunidade científica e médica. Esta importante diferença na mortalidade poderá na verdade refletir: menor acesso a cuidados avançados, incluindo diagnóstico precoce e tratamentos inovadores e mais eficazes; diferenças biológicas relevantes para a progressão do cancro (sistema imunitário, metabolismo, microbioma, entre outros); aspetos culturais (menor participação em rastreios, por exemplo). Em todos os estudos, é feito um alerta importante: há que distinguir os aspetos biológicos daqueles que têm uma base socioeconómica. Para isso, mais estudos e estudos com mais qualidade estão a ser realizados.
Numa altura em que o diagnóstico do cancro tem sido alvo de avanços tecnológicos importantes e em que mais e melhores fármacos têm sido descobertos e desenvolvidos com sucesso clínico importante, importa explorar a diversidade do cancro, mas também do hospedeiro.
Afinal, não existe “um cancro” mas sim uma multitude de cancros, com a correspondente complexidade acrescida pelos seus hospedeiros.
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