Os jornalistas sabem-no de cor e salteado, mas os leitores não têm obrigação de o saber: as notícias concorrem entre si e, mesmo que existisse o maior jornal do mundo, mesmo que a capacidade de perceção dos leitores fosse infinita, os acontecimentos importantes estariam sempre em disputa com outros acontecimentos igualmente importantes no espaço público. Por isso, é tão cruel que, de há duas semanas para cá, a guerra Israel-Hamas tenha desviado as atenções da guerra Ucrânia-Rússia. E, noutra escala, o mesmo poderá dizer-se das legislativas que, no fim de semana passado, ocorreram na Polónia. Porque devemos, então, fazer um esforço para olhar para o que está a acontecer no Leste da Europa?
Foi Anne Applebaum quem, em entrevista ao Expresso, estabeleceu esta comparação. A jornalista e historiadora – que acompanhou de perto as transições após a queda do Muro de Berlim – chamou a atenção para o facto de, para Portugal, as eleições polacas poderem ser “mais importantes” do que o que está a acontecer na Faixa de Gaza. Dizê-lo não implica, evidentemente, nenhuma desvalorização do drama humano que se vive no Médio Oriente, é apenas uma constatação pragmática acerca dos interesses dos países e das razões que fazem girar a roda das relações internacionais. Os resultados oficiais das eleições polacas deram a vitória ao Partido Lei e Justiça (PiS), de Jaroslaw Kaczynski, com 35,4% dos votos, mas uma coligação de partidos da oposição, liderada pela Coligação Cívica, obteve 53,7%, o que garante uma larga maioria de deputados no Parlamento. Ao que tudo indica, Donald Tusk estará, assim, em condições de formar governo. O entusiasmo com esta vitória foi tal que, na noite das eleições, após as primeiras sondagens à boca das urnas, o antigo primeiro-ministro e ex-presidente do Conselho Europeu não teve meias-palavras: “É o fim de um tempo. É o fim da liderança do PiS. Nunca estive tão feliz. A Polónia ganhou, a democracia ganhou.”
Na Polónia, mas também no espaço europeu, as legislativas de outubro de 2023 têm sido vistas como as mais importantes desde que, em 1989, Lech Walesa e o seu Solidariedade puseram fim a décadas de comunismo. Os resultados representam uma lufada de ar fresco na democracia iliberal que, nos últimos anos, fez alastrar o medo e o ódio, incentivou a xenofobia e a desconfiança em relação à União Europeia, tomou a televisão pública e minou as principais instituições do Estado. Num artigo recente da The Atlantic, Applebaum chegou a escrever que a democracia polaca estava em risco e podia não vir a sobreviver ao governo do PiS.
Dos movimentos anticiência aos críticos do modelo capitalista, o mundo está cheio de descrentes, incluindo descrentes à procura de um maravilhoso mundo novo em realidades demasiado alternativas (pelo menos, para o meu gosto). Mas, para os que ainda acreditam nos valores democráticos, há umas quantas boas notícias a assinalar nas eleições polacas do último domingo. Desde logo, a importância da alternância democrática e, sobretudo, a vitória da oposição numas eleições pouco justas e altamente polarizadas, contra tudo e contra todos. Depois, a questão de a mobilização do eleitorado ter sido superior à de 1989, tendo-se verificado uma taxa de participação na ordem dos 74%: os polacos não só perceberam a importância de ir às urnas como houve filas de eleitores à espera para votar pela noite dentro e vizinhos a distribuir bebidas quentes para combater o frio. Um cenário simpático de solidariedade que também é digno de nota por acontecer num mundo onde, infelizmente, proliferam os exemplos de cidadãos abstencionistas, descrentes na democracia – e, com eles, os casos de líderes políticos que não estão à altura do que se lhes exige. Pela primeira vez, houve ainda mais mulheres do que homens a votar, o que em parte estará relacionado com as políticas antiaborto ultraconservadoras do governo de Kaczynski. Por fim, registou-se também uma grande participação do eleitorado jovem: entre os 18 e os 29 anos, o PiS foi o partido menos votado, com apenas 14,4% dos votos nessa faixa etária.
Ainda é cedo para cantar grandes vitórias, sabe-se que, num futuro próximo, nem tudo serão rosas. O Nobel da Paz Lech Walesa, em entrevista à Gazeta Wyborcza, alertou para os problemas da transição, assegurando que Kaczynski “não vai desistir do poder”. O PiS capturou o Estado polaco, minou as instituições por dentro e, também por isso, Tusk não terá a vida facilitada. Na sua coluna do The Guardian, o historiador inglês Timothy Garton Ash diz que já aprendeu uma palavra nova: depisyzacja (em português, significa qualquer coisa como “desPiScificação”). Em 1989, os polacos tinham esperança noutros amanhãs que cantam, mas, em 2023, o sentimento que os fez votar foi o medo. Se a alternância não for capaz de concretizar a mudança, virá a frustração. E a raiva.
Breviário
Automóveis “versus” bicicletas
É uma pena o debate acerca das ciclovias de Lisboa estar tomado pela polarização (Carlos Moedas deu o mote quando fez da ciclovia da Avenida Almirante Reis uma bandeira da sua campanha eleitoral). Em vez de um projeto com pés e cabeça, o que temos é uma discussão a preto e branco na qual quase todos os argumentos vão dar à dicotomia bicicletas/carros, a favor ou contra. Há ciclovias demasiado estreitas? Há. Há ciclovias em cima de passeios? Há. Há ciclovias com paragens de autocarro pelo meio? Há. Há ciclovias sem segurança? Há. O que é preciso é redesenhar todo o plano de ciclovias (e, já agora, toda a mobilidade na Grande Lisboa), sabendo que o tempo dos combustíveis fósseis já passou. É uma reforma estrutural? É, mas um dia alguém vai ter de a fazer.
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