A propósito de uma notícia da Visão, com um depoimento meu acerca das declarações que tinha dado ao Jornal 2, o jornalista José Rodrigues dos Santos achou por bem vir defender-se. E fez bem, pois está no seu direito. Contudo, esta réplica visa esclarecer o que José Rodrigues dos Santos afirma do ponto de vista histórico. Aproveito para agradecer o respeitoso tratamento por Professor, mas não lecciono em qualquer instituição de ensino.
Faço notar que me irei concentrar nas questões relativas a Cristóvão Colombo. Aquelas que ocupam grande parte do seu texto são relativas às origens marxistas do fascismo, assunto sobre o qual o jornalista reputa especialidade por ter feito uma tese de doutoramento em Lisboa e Paris. Note-se, no entanto, que a área de especialização é em “Estudos Globais” e em “Ciências da Informação e da Comunicação”, e não em História. A perspectiva que adopta não é a de historiador, e é o papel do historiador que está aqui em causa. Nunca me arroguei especialista na matéria, e o campo da História Contemporânea não é manifestamente o meu. Mas o campo científico da História, sim. Manifestei-me enquanto historiador e cidadão, sem “interesse ideológico” de qualquer natureza, “ciúme”, “inveja” ou “orgulho”. O comentário que fiz sobre esse assunto foi apenas ao encontro de dúvidas levantadas legitimamente por outros historiadores quando o mesmo jornalista veio falar a público sobre tal, quando publicou o seu romance. Deixo, por isso, as respostas a essas questões a algum colega de História Contemporânea que esteja interessado.
Mas cheguemos a Cristóvão Colombo. No entanto, fique salvaguardado que estamos em campos diferentes. A metodologia, as formas de análise e a própria concepção dos acontecimentos é abordada de forma diferente para um jornalista e para um historiador. E a palavra deste último é constantemente debatida, e muitos se acham legitimados para entrar por esse campo. Tal não revela uma visão corporativa da área, mas sim a necessidade de se tomar a sério uma área que para muitos é feita apenas de histórias.
O jornalista José Rodrigues dos Santos diz que “não existe nenhuma prova sólida de que ele fosse de facto genovês” e que “há sugestões de que ele poderia ser português”. No entanto, continua sem revelar essas provas ou essas sugestões. Afirma até que todas as provas de que era genovês são “fontes secundárias sem que os originais tenham sobrevivido ou então estão carregados de incongruências”. Como supõe, e bem, eu prezo a crítica dos documentos, mas não sei o que quer dizer por “fontes secundárias” neste contexto: serão fontes por outros que não o próprio Colombo? É que o historiador não trabalha seleccionando fontes pela sua origem. Nem que incongruências são essas. Não se pode esperar que fontes com quinhentos anos respondam inteiramente às nossas perguntas, quando se ignora o seu contexto de produção.
Sobre as ditas fontes o jornalista menciona, entre outros, dois documentos: o “Mayorazgo” (imagino que se esteja a referir à instituição da sua herança) e o “documento Assereto”, um documento notarial de 1479, escrito em Génova, onde Colombo se identifica como cidadão daquela cidade. Nada adianta sobre os mesmos, pois refere apenas que qualquer discussão sobre eles se tornará “técnica”. Ora, terei todo o prazer em ouvi-lo dissertar sobre a instituição de um morgadio em Castela, nos inícios do século XVI, e na análise paleográfica e crítica de um documento notarial italiano da segunda metade do século XV. Ou sobre outros documentos columbinos. Pois o que sugere é um debate sobre a natureza destes documentos e a sua validade, dentro da produção documental da época, o que remete para a metodologia utilizada e problemática do saber histórico.
Mas se quiser ir além destes dois documentos, poderemos debater as 119 referências documentais dos séculos XV e XVI que atestam a naturalidade genovesa de Colombo, compiladas pelo historiador Luís Filipe Thomaz, numa obra recente onde biografa esta personalidade e disseca todos os argumentos sobre a tese da suposta naturalidade portuguesa (Cristóvão Colombo, o genovês, meu tio por afinidade, Academia de Marinha, 2021). Se quiser, podemos ainda passar a pente fino a documentação colombina publicada por Consuelo Varela e Juan Gil, dois dos maiores especialistas do assunto, ou o que já muito se escreveu desmontando, vezes sem conta, todas as supostas provas da naturalidade portuguesa do navegador genovês, como os livros de Luís de Albuquerque, Alfredo Pinheiro Marques ou Vasco Graça Moura. Mas parece-me que acrescentar uma lista bibliográfica pouco adianta ao debate.
Levanta também dúvidas sobre o “consenso” historiográfico sobre a naturalidade de Colombo, citando o historiador Joaquim Veríssimo Serrão e o historiador da cartografia Armando Cortesão, ambos já falecidos. Ao contrário do que poderá pensar, a opinião destes historiadores não põe em causa este consenso. Aliás, a última obra de Cortesão versava sobre supostas viagens secretas dos portugueses no Oceano Índico antes da viagem de Vasco da Gama, e tal não colheu qualquer apoio por parte da historiografia. Poderá até arrolar mais nomes, que continuamos no mesmo.
Para terminar, bem sei que fui eu que puxei o assunto para a praça pública, mas é o jornalista José Rodrigues dos Santos que continua a credibilizar essas teorias, sem sustento, em horário nobre, em canal público. Aliás, encerra a sua resposta colocando nos dois lados da balança as duas hipóteses: a do Colombo português e a do Colombo genovês. Fala em “sugestões” e “indícios”. O que, por si só, diz muito. Repare-se que a teoria do Colombo português apenas pode ser explicada como se se tratasse precisamente de um romance: interpretando as fontes de uma certa maneira e estando em causa uma conspiração que conseguiu esconder com sucesso a naturalidade de um homem que alcançou uma fama internacional (à escala europeia) sem precedentes. Acreditar que tal seria possível no século XVI também diz muito sobre a metodologia e o conhecimento da época.
A polémica levantada é, na realidade, um não assunto. O jornalista José Rodrigues dos Santos continuará certamente a achar que nada disse de grave, acreditando que não pôs em causa o trabalho historiográfico e que a sua opinião é válida. Os defensores do Colombo português continuarão a arrolar as mesmas supostas provas. Eu continuarei na minha, ciente de que este tipo de discurso corrói o papel do historiador e do seu trabalho, e que muitos continuam a entrar num campo científico que não dominam, pensando que o podem fazer sem adoptar a metodologia própria da área. E querendo simultaneamente isentar-se de crítica, que é parte essencial do trabalho historiográfico. A bem do rigor diga-se que a relevância da naturalidade de Colombo é praticamente nula. Já foi debatida, à exaustão, a nível internacional. Com dezenas, senão centenas de dissertações de mestrado, teses de doutoramento e projectos de investigação a serem desenvolvidos na área, sobre os mais variados temas e com as mais variadas abordagens, o Colombo português torna-se francamente num assunto irrelevante na historiografia portuguesa. E parece-me que sobre isso há consenso.
Roger Lee de Jesus, Investigador da Leibniz Universität Hannover e do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra
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