Depois da turbulência gerada pelos abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa, e das polémicas envolvendo os gastos com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o evento realizado em Lisboa acabou por se tornar uma poderosíssima operação de propaganda para a milenar instituição romana e uma prova de força e de vitalidade que torna as notícias sobre a morte da Igreja manifestamente exageradas. Mesmo o ambiente vivido em Lisboa, com menos lisboetas mas mais juventude e mais cosmopolitismo, pulverizou o ceticismo ou a má vontade sobre a alegada “confusão” ou o “caos” que iria instalar-se. Pelo contrário, foi bonito ver como jovens de todo o mundo, que caminhavam pela cidade como em carreiros de formigas, conquistavam os indígenas, com a sua energia e a sua alegria contagiantes. Foi bonita a festa, pá, e não apenas pela simpatia gerada pela personagem Francisco. Na verdade, jovens católicos de todo o mundo marcaram pela diferença, na postura e nos comportamentos. Os cristãos chamar-lhe-iam “virtude”, mas nós encontraríamos uma expressão um pouco mais laica: “civismo”. Mais de um milhão de forasteiros, a esmagadora maioria dos quais a atravessar uma “idade difícil”, deram, nesse capítulo, dez a zero ao jovem português médio. É verdadeiramente espantoso – e seria legítimo que a Igreja usasse este argumento… – que, com tal multidão, não se tenham, praticamente, registado escaramuças, desacatos, feridos, vandalismo, overdoses ou comas alcoólicos – nem os habituais queixumes e lamúrias característicos dos “tugas”, apesar das condições difíceis, maus transportes incluídos. Mesmo com consumo de cerveja, palavras de ordem ou gritos de claques papais, houve alturas, durante as cerimónias religiosas, em que podia ter-se ouvido, no meio de um milhão e meio de pessoas, o zumbido de um inseto. A “juventude do Papa” é um dos grandes trunfos da Igreja Católica – e o próprio Papa o seu principal ativo.
No rescaldo da JMJ, porém, tudo espremido, o resultado pode ser muito pouco. O “festival de verão” não se refletirá em “santidade”, mudança de vida ou benefícios para a Humanidade. O capitalismo selvagem e predador continuará, os pobres continuarão a empobrecer, as alterações climáticas agravar-se-ão, os autoritarismos fascistas, comunistas, nacionalistas ou fundamentalistas persistirão e guerras serão deflagradas – e o católico continuará a apontar o dedo ao pecador. A catarse da JMJ morre aqui.
O Papa é uma figura carismática e empática, uma estrela pop eficaz que domina o palco e a agenda mediática – mas as suas mensagens, para fora, muito básicas, raramente ultrapassam o lugar-comum do coach tradicional, na linha do “força, tu consegues”. E mesmo a frase muito citada – “só é lícito a um homem olhar para outro de cima para baixo para ajudar a levantá-lo” não é original, variando as versões sobre o seu autor entre Gabriel García Márquez e Johnny Welch. Ainda assim, quando fala para dentro (“todos, todos, todos”), Francisco provoca ruturas: quem são “todos”? São os migrantes, os membros das comunidades LGBTI+, os divorciados, as mães solteiras, as mulheres que abortaram, os que defendem a eutanásia? Estará o Papa a apagar todas as linhas vermelhas para fundar uma nova Igreja facilitista, onde o sacrifício, a disciplina e o compromisso não sejam necessários? O filho pródigo acabou por ser o mais favorecido… E Francisco segue de perto, o mais à letra possível, a narrativa parabólica de Jesus Cristo. O próprio Papa recorre a imagens poéticas – “sejam surfistas do Amor”.
Em conjunto com a “sua” juventude, o Papa Francisco é o grande ativo que qualquer organização poria a render ao máximo, mas que a Igreja está a desperdiçar a cada dia que passa. A unanimidade gerada em torno do Papa é, sobretudo, laica. Francisco está longe de ser consensual entre a hierarquia, entre os leigos e as várias comunidades de base, sobretudo as mais conservadoras. Os seus contestatários, como os saudosistas de Bento XVI, são a reencarnação dos frades que no romance de Umberto Eco O Nome da Rosa pretendem proibir o riso. E há muitos. Cada vez mais ativos e cada vez mais dispostos a provocar um cisma na Igreja. Eles atuam na sombra, em missas à porta fechada, ou, mais às claras, nas redes sociais, quer reinterpretando o que “o Papa quer dizer” quer hostilizando-o abertamente. Aos 86 anos, Francisco tem pouco tempo. Ele sabe que é a última oportunidade da Igreja. A “alegria é missionária”, mas a morte é certa. Depois de Francisco, a Igreja vai ter de decidir entre um Francisco II ou um Bento XVII. Entre a reinvenção (o regresso às origens) e a trincheira. Saber-se-á, então, se a semente deixada pelo primeiro Papa verdadeiramente cristão da História – Jorge Bergoglio – frutifica como trigo ou se é tratada como o joio da parábola de Cristo.
Golpe de Vista
As obras-fantasma
Há demasiado tempo que decorrem obras no IC2, na zona da Asseiceira e Rio Maior, o que obriga a desviar o trânsito (sentido Sul-Norte), intenso em camiões, por dentro destas duas localidades. O caos está instalado há meses! Umas obras de Santa Engrácia sem qualquer justificação para tal demora. Sobretudo quando, em dias úteis, como o da última sexta-feira (e isto é apenas um exemplo…), pelas 16h30, não se via uma única máquina nem um único trabalhador ao longo da vintena de quilómetros onde, supostamente, deviam decorrer os trabalhos.
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