Dom Pedro I (ou D. Pedro IV, como preferir) foi claro (pelo menos parecia, até então) que, depois de morto, queria que o seu coração permanecesse na cidade do Porto. Entretanto, o coração de D. Pedro foi visitar terras d’além mar para participar das comemorações pelos 200 anos da independência do Brasil. Turismo visceral, diga-se de passagem.
Fui confrontada a dizer o que eu achava da situação e, eis-me aqui, a escrever estas breves linhas, enquanto o Presidente do Brasil está com o coração nas mãos, literalmente.
Por mais romântica que eu tente ser, a fim de convencer a mim própria do simbolismo disto tudo, não consigo deixar de achar a situação esdrúxula: um coração sendo recebido com honras de Estado. Transportado pela Força Aérea Brasileira (FAB). Recebido no Palácio do Planalto. Com direito a uma cerimônia no Palácio do Itamaraty: “Como se o Imperador lá estivesse”. Como?! É que os restos mortais do senhor já estão no Brasil!
Eu, se fosse o D. Pedro I, não estaria feliz: ele, ainda em vida, pediu para ter o corpo sepultado em Lisboa e o coração enviado ao Porto. Aí, em 1972, em meio às comemorações dos 150 anos da independência brasileira, retiram o que sobrou do senhor (que descansava feliz no Mosteiro de São Vicente de Fora, entre as suas duas esposas) e transferem – definitivamente – para o Monumento da Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo.
Agora, levam o famigerado coração para dar uma voltinha. Mas não sejamos injustos: durante a viagem e a visita, o coração está sempre acompanhado por alguém. Afinal, nada é mais triste do que um coração solitário…
Se me pedissem para escolher um tema musical para as comemorações da independência eu escolheria aquela música “Ai, coração alado…” do Fagner. Nada mais apropriado.
O verdadeiro propósito das comemorações da independência só pode ser pregar uma partida ao defunto Pedro: “Veja lá, Pedrocas, a situação que você meteu o Brasil depois de declarar a independência!”
Estou a fazer um esforço para afastar estas notas de pretensos aspectos políticos por trás do uso de um órgão como espécie de relicário pelo governo brasileiro. Mas está difícil…
A ideia do transporte do coração já seria bizarra e criticável vindo de qualquer pessoa que estivesse no cargo de Presidente da República. Vindo do atual, às vésperas das eleições presidenciais, soa muito suspeito.
Será que o atual Presidente, simbolicamente, quererá associar uma figura histórica à sua própria pessoa? Já que o imperador libertou o Brasil das amarras do colonialismo, o comandante libertará o Brasil das ameaças do Foro de São Paulo, por exemplo?
Será que o Presidente desejará fazer uma exibição tão grandiosa como aquele espetáculo dos restos mortais que foi promovido na época da ditadura militar brasileira, que ele tanto admira?
Rui Moreira, autarca do Porto, ao assinar o documento que autorizava ‘a viagem do coração’ (isso parece título de novela das seis), afirmou que “esta é uma homenagem ao Brasil, pátria-irmã”.
Rui Moreira é tão bom em prestar homenagens como aquela pessoa que fez o busto do Cristiano Ronaldo no aeroporto da Madeira. Se o Rui Moreira quiser me homenagear, dispenso.
Rui Moreira ainda descartou o uso político do coração pelo atual governo brasileiro: “Não vou emprestar para o governo atual. Foi pedido pelo Brasil”.
O certo é que o Presidente brasileiro aproveitou o momento em que o coração foi recebido no Palácio do Planalto para dar o famoso grito: “Deus, pátria, família!” que dá mote ao seu governo e à atual campanha eleitoral. Para quem pretendia homenagear a TODOS os brasileiros, o tiro saiu pela culatra…
Uma boa homenagem aos brasileiros seria a realização de uma divulgação nacional com o objetivo de esclarecer o que foi o episódio da Independência do Brasil… É que o coração de D. Pedro foi recebido pelo Presidente com honrarias de Estado, mas em meio à indiferença de, pelo menos, um terço dos brasileiros.
A verdade é que, se saíssemos nas ruas brasileiras para perguntar quem foi D. Pedro I, muita gente não saberia dizê-lo, muito menos contextualizar historicamente o episódio da Independência. Não estou a exagerar. E espero que tal pesquisa nunca seja feita, pois os resultados deixariam meu coração partido (melhor garantir a integridade dele enquanto ainda pertence à minha cavidade torácica, pois certamente não ficará conservado em formol).
Outra homenagem maravilhosa à população brasileira, em especial às mulheres brasileiras, seria relembrar o incrível papel que a Imperatriz Leopoldina teve na declaração da independência. Enquanto D. Pedro I viajava por São Paulo, a arquiduquesa foi quem presidiu o Conselho de Estado e assinou o decreto que declarava a separação de Portugal. Restou ao D. Pedro dar o suposto grito do Ipiranga. E ficar com a fama. Já Leopoldina entrou para a história como a maior cornuda do império…
Mas voltemos à realidade da celebração dos 200 anos da Independência, pois a homenagem ao povo brasileiro está a acontecer com a exposição do coração…
Certamente, D. Pedro não gostaria que suas vísceras ficassem a fazer turismo mundo afora… E teria dúvidas sobre a sensatez da utilização de um órgão morto para celebrar um momento histórico…
Mas se o coração falasse, gritaria: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, digam ao povo que VOLTO!” ou “Independência e sossego na morte! Boa sorte, Brasil!”
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