1. O que foi dito sobre Jorge Sampaio (JS), o muito raro grande consenso sobre a sua figura, o seu perfil humano, o seu percurso político, a própria forma e qualidade com que decorreram as cerimónias de despedida e homenagem após a sua morte – foram o último grande contributo que deu ao País, aos valores pelos quais sempre se bateu. Acrescendo, assim, ao que fez e nos deixa de essencial: o exemplo de humanismo, dignidade, integridade, coerência, serena coragem; a porfiada, consistente e sempre inteligente luta pela liberdade, solidariedade, democracia; o profundo amor a Portugal, sendo em simultâneo empenhado cidadão do mundo; a constante atenção aos outros e o apurado sentido das responsabilidades e do serviço público; a recusa de demagogia, arrogância, populismo de qualquer espécie; a sensibilidade para tudo, dos problemas sociais às manifestações culturais e artísticas.
2. No desgosto do desaparecimento do cidadão e do amigo, foi reconfortante ver o unânime reconhecimento da sua personalidade e ação, em tantos expressivos testemunhos. Especial destaque para as duas intervenções de Marcelo, para a de António Costa nos Jerónimos e, de forma superlativa, para a evocação pelos filhos, Vera e André, que deram do pai um belo, completo e até comovente retrato. Creio que tudo isto também contribuiu para um reforço da democracia e da imagem dos “políticos” que merecem respeito e admiração.
3. Estranhamente não vi salientado, sequer referido, que em 2016 foi atribuído a JS, pela ONU, o Prémio Nelson Mandela, que visa distinguir a “contribuição excecional” de alguém “em prol da humanidade”, na esteira de Mandela, “do seu legado em matéria de reconciliação, transição política e transformação social”. É, pois, difícil haver maior honra e consagração internacional do que receber, e logo na sua 1ª edição, aquele prémio, do mais alto valor simbólico, e talvez por isso só outorgado de cinco em cinco anos.
Tal mostrará haver tanto a dizer sobre JS que até fica esquecida aquela extraordinária distinção… Certo é que os média, maxime as televisões, não lhe deram o devido relevo, como então assinalei. E muito do agora justamente sublinhado a propósito do antigo Presidente contrasta com certos anteriores lastimáveis apagamentos ou desvalorizações.
4. Podia, mas não cabem, dar vários testemunhos pessoais. Ficam só duas ou três notas. Conheci o Jorge há… 60 anos, após a vitória da lista democrática na Associação Académica de Coimbra (AAC), de longe a maior e mais importante do País. E logo em 1961 promovemos o I Encontro Nacional de Estudantes, decisivo “pontapé de saída” para toda a luta estudantil posterior. Na mesa da sessão plenária final estavam o secretário-geral da RIA, JS, o presidente da AAC, Carlos Candal, e eu, da organização. E nesses tempos difíceis os companheiros de combates e de sonhos com quem se tinha mais afinidades tornavam-se logo amigos de infância.
Nas lutas estudantis, depois como advogados de presos políticos no Plenário, e por aí fora, JS já notoriamente se distinguia, em particular pela capacidade de liderança. Que não provinha de discursos e atitudes, demagogia e métodos à maneira dos condottieri, mas sim da preparação e visão, força argumentativa e persuasiva, coragem tranquila e tolerante – servidas por poder de comunicação, por saber estabelecer diálogos e criar pontes, sentido da oportunidade e dos equilíbrios necessários para a eficácia face aos objetivos a atingir. E pelo mais que ao longo da sua longa vida pública mostraria, incluindo a apetência e o gosto pela política, que sempre fizeram antever que da “geração de 60”, ele seria inelutavelmente quem se lhe dedicaria com mais êxito.
5. Sobre as décadas do JS político, outras tantas décadas me pronunciei, mormente como comentador. Uma das críticas, infeliz e injusta, que várias vezes lhe foi feita, mesmo que de forma velada, foi a de ser de “lágrima fácil”. Ora, para mim, o que estava na sua base era umas das maiores qualidades de JS: ter, como referi, uma grande atenção aos outros – e uma sensibilidade que o fazia sinceramente emocionar-se. Ainda bem; um Homem também chora. Lembro em particular como isso amiúde ocorreu na visita de Estado ao Brasil, em que como seu convidado o acompanhei: ele era, muitas vezes, um racionalista comovido.
Tendo, sobretudo como Chefe de Estado, de suportar e ultrapassar muitas dificuldades, de tentar não ferir ninguém e chegar a consensos até impossíveis, o seu persuasivo “verbo” de outrora começou a assumir uma forma bastante redonda. Quando lhe fiz a sua primeira, e grande, entrevista do segundo mandato, aqui para a VISÃO (de 27/9/2001), mudando de registo e tratando-o por tu, perguntei ao “velho amigo”, a finalizá-la, como é que o homem frontal que era compatibilizava isso com as “cautelas” que aquela redondez indiciava. E o Jorge respondeu: “Isso é uma excelente pergunta. Confesso que me é muito difícil. Muitas vezes, tenho de fazer um grande esforço para sobrepor ao meu espírito combativo o equilíbrio e a serenidade que o cargo de Presidente exige…”
(Opinião publicada na VISÃO 1489 de 16 de setembro)