O balanço da insurreição popular promovida e objectivamente alimentada pelo ainda presidente (desgraçadamente!) dos Estados Unidos, não está fechado. Para já conta com cinco mortos, catorze polícias feridos (alguns em estado grave), assalto e invasão de uma instituição federal, de que resultou a sua vandalização: vidros partidos, mobiliário destruído ou pilhado e um claro atentado à integridade física dos representantes democraticamente eleitos pelo povo americano e do seu vice-presidente, e ataques a jornalistas. Se não fosse a presença de espírito de um funcionário em recolher e colocar a salvo as caixas com as certificações de votos dos estados, poderíamos estar aqui a falar dum sarilho muito mais complicado…
A populaça utilizou gases contra a polícia para conseguir entrar nas instalações e violou o recolher obrigatório. Assim como Antíoco IV Epifânio sacrificou porcos no altar do templo em Jerusalém, no II séc. a. C., sabendo que se tratava de um animal cerimonialmente imundo pelas leis judaicas, também alguns vândalos trumpistas chegaram ao ponto de se fazer fotografar sentados nas cadeiras da presidência do Congresso e dos gabinetes. Ou seja, apresentaram porcos no altar da democracia americana.
Segundo a CNN a polícia desactivou bombas e encontrou uma viatura no terreno do Capitólio, onde se encontrava uma espingarda e até dez bombas incendiárias. Ficou claro que Trump estava apostado em promover um golpe de estado. Incitou, de viva voz, a populaça a invadir o Capitólio e interromper a confirmação formal do presidente eleito, pelas duas câmaras do parlamento, a fim de instaurar a lei marcial e dar a volta à situação. No que toca ao respeito pelas instituições democráticas, Trump e os que ainda o apoiam não são melhores do que Nicolas Maduro e sua pandilha.
Além de os insurgentes se apresentarem quase todos sem máscara (segundo o jornal “The Atlantic” apenas cerca de 5% as estariam a usar) e sem respeitar o distanciamento social, exibiam bandeiras confederadas, bandeiras Gadsden (extrema-direita) e, a meu ver o mais grave de tudo, faixas com mensagens religiosas (“Jesus saves”). Mas quatro horas depois o reforço das forças de segurança conseguiu limpar o edifício e os representantes do povo confirmaram formalmente a eleição de Biden e Harris, de acordo com a lei.
Se o sistema de justiça não responsabilizar criminalmente Donald Trump pelos vários crimes cometidos nestes últimos dias (o que duvido!) a América será uma república das bananas, o que é mau para a Democracia, o Ocidente e a mínima decência na vida pública, assim como um trunfo para os Putins desta vida… Isto é, Donald Trump devia ser preso depois do dia 20 e acusado de traição à pátria por esta tentativa declarada de golpe de estado, que não pode ficar impune. A Justiça tem que agir e com mão pesada. Steve Levitsky (Universidade Harvard) afirmou à BBC que “um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso”.
De acordo com o Guardian, 46,8% dos americanos que votaram Trump em 2020 não o responsabiliza pelo que fez à América, pelo que a aceitação do comportamento de Trump será o seu legado mais vil, pois trouxe impunidade ao mais alto cargo do país. A mensagem é que um presidente pode obstruir investigações a delitos cometidos, pressionar autoridades estrangeiras para atacar rivais políticos, recusar intimações do Congresso, inundar a internet com informações falsas sobre os opositores, esconder declarações de impostos, acusar a imprensa de ser “falsa” e “inimiga do povo”, ganhar dinheiro através de negociatas com o cargo que ocupa e escapar impune. Ainda assim quase metade do eleitorado votou pela sua reeleição.
Mentiu sobre os resultados eleitorais, convencendo disso boa parte dos seus eleitores, incitou os apoiantes a tomarem o Capitólio de assalto, depois de ter pressionado o seu vice a infringir a lei a seu favor. Mas não é tudo. Antes de abandonar a Casa Branca, ainda teve tempo e descaramento para aplicar perdões presidenciais à família, amigos e a si próprio. Como o golpe falhou, Trump ainda teve a distinta lata de vir criticar os apoiantes que antes atiçara contra o congresso, para tentar compor a sua imagem…
Para lá dos racistas e supremacistas brancos, indivíduos de grupos de extrema-direita, defensores do comércio livre de armas (mesmo de guerra), QAnon, Proud Boys e outros extremistas, boa parte da multidão dos insurgentes tem sido sensível à verborreia trumpista e estará sinceramente convencida de que a eleição foi roubada pelos democratas, o que só atesta a ignorância atroz do americano médio.
Já os que utilizam faixas com slogans cristãos radicam numa teologia distorcida e numa escatologia problemática. Considerar um criminoso como “enviado de Deus” é de uma cegueira espiritual e de um apoucamento humano atroz. Como dizia G. K. Chesterton: “A marca especial do mundo moderno não é ser céptico, mas ser dogmático sem o saber”. De facto, “as pessoas estão a comportar-se de forma cada vez mais irracional e febril, seguindo o rebanho ou sendo simplesmente desagradáveis” (Douglas Murray, “A Insanidade das Massas”, Desassossego, 2020).
Estou em crer que, mais cedo ou mais tarde, a igreja americana pagará caro este adultério espiritual com Trump. Oxalá me engane.