Hoje não é possível falar de quase nada sem falar de pandemia ou Covid-19. Em menos de um ano, muito pouco continua como dantes. Isto é assim tanto em Portugal como no resto do mundo. Mas aqui, para além da pandemia, temos visto instalarem-se contrastes, contradições e confusões que eram absolutamente evitáveis.
Vivemos num país em que é possível ter um fim de semana com um evento autorizado e abençoado pelo Governo – Fórmula 1– que junta pessoas do País inteiro, que passam concelhos, distritos, regiões e até fronteiras num ajuntamento de milhares de pessoas e, logo no fim de semana a seguir, todas as pessoas são proibidas de visitar a sua família no concelho ao lado ou de honrarem os seus mortos numa ocasião que acontece apenas uma vez num ano. É um contraste que não se percebe porque é completamente irracional. Como é também absolutamente incompreensível que seja proibido passar para outro concelho para ir ao cemitério, mas permitido para ir a um espetáculo.
Este contraste é apenas um exemplo do que já se está infelizmente a tornar habitual na gestão da pandemia: a falta de preparação e bom senso de quem manda. Seria melhor que todos os excessos fossem evitados: quer os excessos de ajuntamentos, quer os excessos de proibições. Esse bom senso que não tem existido simultaneamente respeitaria as pessoas e preservaria a economia. Infelizmente, a opção tem sido por uma política de sinais e abanões completamente errática que infantiliza os cidadãos.
O exemplo que utilizei é flagrante, mas não é o mais grave. Não podemos esquecer as mudanças radicais na vida de todos os que fazem parte de grupos de risco, que passaram a conviver com um quotidiano muito diferente, e que viram limitadas as próprias possibilidades de convívio com a sua família. Há um ano, ou em circunstâncias normais, era um sacrifício impensável.
E se há sacrifícios que se podem perceber numa situação muito difícil, há outros que não têm explicação porque há uma alternativa óbvia. E, no que toca aos cuidados de saúde, há uma alternativa que pode, pelo menos, tornar os sacrifícios menos graves. Em julho, havia já milhares de consultas por fazer e de cirurgias adiadas. Enquanto isso, o Estado recusou-se teimosamente a fazer acordos com o setor social ou privado para utilizar toda a capacidade instalada para cuidados de saúde no País. As consequências são de vida e de morte para muitos doentes que esperam e desesperam à espera de uma consulta ou de uma cirurgia que nunca mais chega. E vir agora falar de uma requisição daquilo que podia e devia ter já sido voluntariamente acordado não só não resolve o problema de fundo, como vem ainda acrescentar mais uma iniquidade.
Também na economia e no rendimento, as contradições continuam. Neste último Orçamento, no meio de tantas medidas, ficou para trás e esquecida a promessa de redução do IRS em 200 milhões de euros. Em vez disso, o único alívio fiscal consagrado no articulado é uma medida chamada IVAucher – basicamente, é uma medida que dá às famílias que possam escolher gastar o seu dinheiro em restaurantes, hotéis e cultura, um desconto fiscal. Percebo a necessidade de não deixar morrer o setor do turismo, mas não é com esta medida que vamos lá. Não é razoável, normal ou compreensível criar uma vantagem fiscal para as pessoas irem a restaurantes ou a espetáculos, e adiar a promessa de alívio fiscal para as famílias que escolhem ou são obrigadas a ficar em casa, ou para as que se veem aflitas para terem dinheiro sequer para ir ao supermercado.
Já não é nada cedo para corrigir estes erros. Mas ainda vamos a tempo de não os continuar a cometer
(Opinião publicada na VISÃO 1444 de 5 de novembro)