O episódio conta-se em poucas palavras. Na semana passada, numa audição parlamentar no âmbito do trabalho de especialidade da lei de despenalização da morte assistida, um representante da Federação Portuguesa pela Vida dirigiu-se aos deputados dos partidos proponentes da despenalização assim: “Só vos desejo que não passem o resto da vossa vida com a responsabilidade de terem aprovado esta lei!”
A violência brutal deste “desejo” é a expressão do fanatismo de uns poucos no debate da despenalização da eutanásia. Incapazes de lidar com uma sociedade eticamente plural, usam a ameaça das labaredas do inferno como técnica de pressão. Creem-se guardiões da única doutrina verdadeira e pura e investidos na missão de converter o mundo ao Bem (que é o deles, claro), fazendo guerra aberta contra quem acolhe coerentemente o pluralismo. Não têm opiniões, têm dogmas. Têm dogmas deontológicos e têm dogmas jurídicos. Por isso, a rigidez dos códigos é o seu escudo contra o que de desarmante há na livre determinação de cada um perante o que lhe acontece.
E essa é a questão central do debate sobre a despenalização da morte assistida: decidir se deve prevalecer a rigidez de um código que condena à prisão o médico que entende, em consciência, ajudar um doente irreversivelmente violentado pela dor e pela degradação física a antecipar a morte, poupando-o ao extremar dessa violência que a continuação do sofrimento significa para ele, ou se se deve abrir, excecional e prudentemente, esse código a considerações elementares de humanidade, que são a última salvaguarda do respeito de cada um por si próprio quando a dor está a tomar conta de uma vida que chega ao fim.
O fechamento às vidas concretas das pessoas concretas e à liberdade de decisão de cada um numa ordem de valores plural é a marca do dogmatismo fanático. Para os dogmáticos, a convivência tolerante entre mundividências é sinal de afrouxamento relativista, de abertura ao vale tudo, de banalização do mal. À tolerância, os dogmáticos preferem invariavelmente o absolutismo das categorias abstratas sempre formuladas no singular para serem convenientemente ferramentas do seu poder (falam da vida, não falam das vidas; falam da verdade, não falam das diferentes parcelas de verdade). E, como expressão desse fechamento à diversidade das vidas, o dogmatismo fanático ergue trincheiras na lei penal e nos códigos deontológicos. Para o dogmatismo, se a realidade de heterogeneidade de convicções fundas das pessoas (dos médicos, por exemplo) contraria a unicidade da regra legal ou deontológica, é a realidade que está mal e a regra que está certa. Absolutize-se, portanto, a norma e a realidade converter-se-á. Pelo meio, aos que tentem mudar a lei ameace-se com as labaredas do inferno.
Os anunciadores das labaredas do inferno não conseguem viver com uma pequena coisa: a liberdade dos outros. A tal ponto que, quando ela os contraria, chamam-lhe libertinagem. O livre-arbítrio é algo que lhes causa uma urticária terrível. Para eles, vale o mandamento e a obediência, porque a autonomia de decidir de cada um é uma manifestação de soberba, de individualismo, de desdém para com a “ordem natural”. Para eles, lei que se afaste dessa ordem é celerada e a tarefa do legislador é estritamente pôr em letra de código um suposto direito natural que ninguém discutiu, porque a discussão só traz problemas aos dogmas. Legislador que se atreva a ir mais longe, a não prescindir da sua liberdade de ponderar os valores diversos que coexistem na sociedade concreta é legislador ímpio, leviano, condenado ao fogo eterno. Que mundo tão triste, o do fanatismo dos dogmáticos!
Todos, crentes seja no que formos, vivemos a vida como um dom. O dom maior que é possível conceber. Fazer dessa experiência de dom uma experiência de aprisionamento – “foi-te dada, tens de a levar até ao fim, não sejas ingrato” – é uma brutal contradição. É cada um de nós que administra esse dom – essa é a nossa maior responsabilidade, esse é o nosso maior direito. E não há labaredas do inferno capazes de nos privar dessa responsabilidade e desse direito.
(Opinião publicada na VISÃO 1428 de 16 de julho)