Carrinhas vão chegando, saem mais homens do que mulheres, mas elas também saem. Outros vêm a pé, na estrada, ou de bicicleta, parecem vir de longe protegendo-se do sol e do resto. Parecem ter vindo de muito longe, pela fala, devem ter atravessado continentes e vieram parar aqui. Nunca esta terra, que viu tantos partir, terá pensado que um dia chegariam tantos vindos de tão longe, de terras que nem sabem dizer o nome. Alguns têm lenços atados na cabeça, de maneira diferente da nossa, mas a necessidade faz o engenho e por esse mundo fora as pessoas arranjaram formas de se proteger do sol, e do frio.
Ao começo eram punhados de gente, aqui, ali, com o passar do tempo juntaram-se muitos. Ninguém sabe ao certo quantos são, já se ouviu dizer que só por estes lados serão bem mais de mil. Quem os traz parece que lhes faz um favor, quem os usa só os conhece para lhes dar ordens. Montes abandonados servem de teto, atam-lhes um trapo à porta, atiram para lá meia dúzia de colchões e chegam a ser 20. Isso ou contentores, sem água, amontoados como gado. Atravessaram continentes, passando sabe-se lá pelo quê, para estarem para ali assim, atirados à sorte. Aqui sempre estão melhores do que na terra deles, não há guerra nem fome, pois lá isso, esta sempre foi terra pacífica, e banquetes agora é o que mais apanham.
A seguir ao campo da bola, nos arames de uma cerca, roupas estão estendidas a secar ao vento, gastas do sol, do pó e dos químicos. É lavar, secar e vestir, é a que têm. Fardas nem as imaginam, e não arranjavam uma farda para esta gente? A terra onde trabalham tem dono, normalmente diferente de quem os recruta, lhes retira os documentos e lhes cobra diária e dívida impagável em troca de um buraco. Mas, no fim, obedecem a ordens dos dois, cumprem horários seis dias por semana, mas ninguém sabe quantos são nem como vivem. Ou preferem dizer que não sabem, as contas às mãos que têm a trabalhar são feitas diariamente. Cuidados de saúde e exames médicos são coisas de que esta gente não precisa, na terra deles não tinham, só se sente falta do que se conhece. E instalações e balneários, também não vale a pena o investimento, luxos que depois vai-se a ver nem queriam usar.
E é gente que não levanta cabelo, estão ilegais, piam fininho, não têm autorização para cá estar, só para serem explorados, se forem apanhados, quem os usou paga multa para continuar a explorar outros, e eles têm 20 dias para voltar aos seus países, só não se sabe com que dinheiro e em que condições. Por estes dias de Covid-19, andam ao sabor das apanhas com a máscara na cara, não entram nas estatísticas oficiais e até de ir ao médico têm medo.
O monumento a Catarina está lá, no meio da vinha, a lembrar que naquele lugar assassinaram uma mulher que só queria paz e pão para matar a fome aos filhos. Passados 66 anos, ali estão eles agora, levantados do chão, como escreveu Saramago. “Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo.”
(Opinião publicada na VISÃO 1422 de 4 de junho)