Vivemos hoje, em todo o planeta, sob a ameaça pandémica do novo coronavírus (nCoV).
Detetado em 7 de janeiro deste ano na cidade de Wuah, na província de Hubei, na China, este novo coronavírus tem a particularidade de ser mais agressivo do que aqueles que habitualmente infetam a espécie humana ao longo dos tempos. Provoca pneumonia grave, nalguns casos, e a morte de alguns doentes mais vulneráveis.
A expansão da doença tem sido rápida: em 21 de janeiro a DGS referia-se a 295 casos registados, 270 na China, 2 na Tailândia, 1 no Japão e 1 na Coreia do Sul, com um saldo de 4 mortos. Em 6 de Fevereiro (15 dias depois) a escala alterou-se profundamente: mais de 28 mil casos confirmados, mais de 99% na China. Em mais 24 países espalhados pelo mundo registavam-se já casos confirmados do nCoV. O número de mortos tinha subido para 564 (só um fora da China). A Johns Hopkins University dispõe, on line, de um site designado “Tracking the Wuhan Coronavirus”, que ilustra bem a brutal evolução da doença em todo o planeta. O SARS, em 2002 atingiu apenas 8 mil pessoas, embora com uma taxa de mortalidade bastante superior – 10%. A Gripe A, em 2009, terá causado 18.449 mortes laboratorialmente confirmadas, mas relatórios científicos mais recentes apontam para um volume de óbitos causados pelo vírus H1N1 bem superior: 203 mil pessoas. O nCoV parece ser assim de expansão mais rápida mas com muito menos letalidade do que epidemias anteriores (até agora de apenas 2%).
É hoje claro que a cadeia de transmissão não está ainda devidamente identificada, mas já se tornou óbvio que a passagem de pessoa para pessoa, não reconhecida em janeiro, é uma realidade. E mais, que essa transmissão se pode verificar de um cidadão aparentemente sem sintomas para outro, como ocorreu na Alemanha, na fábrica de Munique.
Por todas estas razões, a OMS decidiu decretar a “Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional”, o que significa que todos os países se devem preparar para assumir medidas de vigilância e controlo sobre a doença. Para isso é necessária coordenação, medidas concertadas e sempre que possível padronizadas, que deem consistência e sentido de união nesta batalha global. E é aqui que começam os maiores problemas e as maiores incertezas. Se há países que estão económica, social e tecnicamente preparados, podendo assim minorar riscos e controlar com alguma eficácia a doença, outros não o estão de facto, podendo ser entrepostos “silenciosos” de transmissão do vírus para países distantes. Os níveis de desenvolvimento diferem muito entre as diferentes Regiões do mundo, com as infraestruturas básicas, a habitação e a educação a mostrarem grandes contrastes. Por outro lado, os sistemas de saúde dos países ricos, onde os gastos anuais, per capita, em valor médio, poderão variar entre os 2mil e os 10 mil dólares, não têm qualquer base comparativa com o que se passa nos países mais pobres de África, Sudeste Asiático e Mediterrâneo Oriental, em que encontramos cerca de 50 países com gastos per capita anuais em Saúde, entre 16 e 100 dólares. E isto em termos médios, porque tudo indica que as despesas de saúde se concentram num grupo restrito de cidadãos ligados ao poder político ou à elite económica. Se a isto associarmos os hábitos de vida e as diferentes culturas em presença, ficamos a perceber melhor o intrincado puzzle que se depara às autoridades sanitárias quando surgem estas crises de tendência pandémica. O que seria adequado fazer-se à luz das melhores práticas de saúde pública, nem sempre é possível concretizar-se, por manifesta falta de meios, por fragilidades da governação, por especificidades socio – culturais, etc.
A China, onde o epicentro ocorreu, já veio reconhecer algumas falhas nas suas intervenções iniciais, mas tem adotado medidas drásticas de isolamento de populações, em quarentena forçada e com internamento obrigatório de casos suspeitos. E até já construiu, em menos de 15 dias, um hospital de campanha de mil camas e outro de 1500 vem a caminho, ambos em Wuhan. O controlo clínico das fronteiras, o cancelamento de voos, a deportação de viajantes com antecedentes de proximidade face ao foco inicial da doença ou o seu isolamento compulsivo, têm sido práticas adotadas por vários países, um pouco em função dos estilos de governação e dos menores ou maiores cuidados quanto aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Na Europa, já com sete países com casos confirmados, os governos têm adotado genericamente posições sensatas, equilibradas e sempre que possível respeitando os direitos individuais. Em Portugal, o Ministério da Saúde, com a sua responsável máxima à cabeça e a intervenção constante da Diretora- Geral da Saúde, tem sido competente, responsável e pedagógico na abordagem desta epidemia, mantendo canais permanentes de informação com profissionais de saúde e com a população em geral, transmitindo confiança e serenidade.
O modo como decorreu o regresso dos 20 portugueses de Wuhan, com o sacrifício e o apoio generoso dos nossos diplomatas na China, foi um sucesso. E o acolhimento que tiveram pelas nossas autoridades de saúde não podia ser mais adequado: ficarão voluntariamente isolados por um período de 14 dias, com monitorização clínica diária, em instalações hospitalares dignas e com todo o conforto possível nestas circunstâncias.
Até agora, Portugal não está na rota deste novo coronavírus. Não é expetável que a situação se mantenha, tal a dimensão desta epidemia e a rapidez da sua expansão para todos os recantos do mundo. Não se espera, todavia, um grande número de casos. O modelo que a DGS desenhou para protocolar casos potenciais do nCoV, está bem elaborado, não descura nenhum pormenor e prevê, desde a intervenção pré-hospitalar até à confirmação diagnóstica e respetivo internamento do doente, todos os passos e cuidados de proteção a ter. Claro que perante as situações concretas poderá haver falhas, como parece ter acontecido com um cidadão estrangeiro em Felgueiras. A formação e o equipamento adequado dos bombeiros é uma vertente importante, pois nem sempre será o INEM a intervir na primeira fase de sinalização de um caso suspeito. Importa referir que as nossas autoridades de saúde não optaram pelo controlo de saúde dos viajantes nos portos, aeroportos ou fronteiras terrestres, ao contrário do que ocorre noutros países. Apenas se disponibiliza informação e aconselhamento. Parece-me uma opção correta, não só pelo esforço e transtorno que isso representaria para milhares de pessoas, mas também se tivermos em conta que esse controlo não garante a eventual contenção de futuros contágios. Pela simples razão de que pessoas assintomáticas podem transmitir o vírus….
Uma nota final sobre a possibilidade da Lei portuguesa vir a contemplar o internamento compulsivo de cidadãos, quer para despiste quer para prevenção ou tratamento de doenças infetocontagiosas. Não será, porventura, o momento mais apropriado para tratar disso, mas deveríamos analisar seriamente esta privação forçada da liberdade, já aplicada, aliás, nas doenças mentais e em circunstâncias bem definidas. Quando está em causa o interesse público ele deve prevalecer face aos interesses individuais.