Aqui não são as linhas de comboio que nos levam aos lugares, mas sim os comboios. Os comboios têm nome próprio, Nozomi, Hikari ou Shinkansen, cada um com a sua personalidade, com ritmo e música que caracteriza a forma como voam sobre as linhas, e até há aqueles que conseguem rolar sem tocar nos carris, os famosos comboios bala.
Quando me disseram que chegavam a ser tão rápidos quanto a própria sombra eu pensei que era mais um daqueles mitos sobre este país. Mas se há assunto em que tudo o que se diz, não é mito ou exagero, são os comboios, os comboios Japoneses.
Na última crónica do projecto “Kids” (saibam como se podem envolver em www.mariapalha.com) falei da importância de estimularmos a consciência social e responsabilidade das nossas crianças. Hoje venho falar sobre generosidade e de como a podemos pôr sobre carris lá em casa.
Decidi vir num comboio shinkanzen para chegar mais depressa a Kannami. Kannami é uma vila com densidade populacional de 585 pessoas/Km2 dedicada à agricultura. O facto de se encontrar meio escondida nas montanhas de Hakone junto às margens do rio Kano dá-lhe uma ruralidade Japonesa muito genuína.
As crianças desta vila são especiais, para além de distinguir auditivamente o nome de cada comboio que se aproxima da estação da aldeia (que fica a mais de 7 km de distância) têm hobbies peculiares: colecionar o sagrado, a vida. Colecionam escaravelhos. Os escaravelhos também são bichos muito especiais, não só aqui, porque são adorados por todos, e especialmente pelas crianças, como noutros lugares. Na história Egípcia, são considerados sagrados e, em geral, porque são símbolos de ressurreição, de fertilidade e vida.
Acredito que se em Kannami soubessem que existem cerca de 30 mil espécies de escaravelhos, de várias formas, com cores e feitios diferentes, estas crianças palmilhavam o mundo para as tentar descobrir e junta-las num só sítio da vila. Não é por uma questão de vaidade, para as exibir como as suas raridades. Não por lhes quererem dar uma vida diferente do que a natureza lhes definiu, mas sim, porque todo o processo de procura de escaravelhos, de procura de vida e fertilidade, é uma aventura que pode ser divertida e exigente ao mesmo tempo e por isso muito mais eficaz quando partilhada. Como em muitas outras vilas e cidades Japonesas as crianças têm a responsabilidade de cuidar de si mesmas e de pôr em prática o que já são capazes de fazer, tal como aceitar novos desafios, sem que isso represente uma ameaça. A criança tem a mesma responsabilidade que o adulto, tem apenas menos autonomia.
Para que a procura de escaravelhos tenha sucesso é importante que o grupo mantenha uma harmonia. Manter a harmonia no grupo significa aprender e viver simultaneamente
com a experiência e com o grupo. Preparar a expedição, observar (não só a natureza – as árvores, os bichinhos ou os arrozais, mas também as limitações e sentimentos dos outros elementos do grupo) para que todos tenham condições para contribuir para o bem comum e assim sentir que pertencem à expedição. Esta busca pelo escaravelho, ou direi pela vida, dá-lhes uma nova consciência de grupo, “eu sou tão importante como cada outra criança ou adulto desta equipa” as relações atingem uma igualdade interessante. As discórdias e/ou frustrações do grupo servem para entender que as relações com os outros são recíprocas e que todos são importantes e acima de tudo, que todos são responsáveis pelas suas vidas e pela vida do grupo. É a assumir esta responsabilidade que Caio, de 6 anos, mesmo quando se zanga com o Yuki por ele não ter apanhado o escaravelho, mais tarde lhe pede desculpa, e o Yuki respeita, prometendo ter mais cuidado com a descoberta do amigo nas próximas expedições. Tal como a Hinna, de 8 anos, ao ver que o Taiyo com menos 3 anos que ela, se isola do grupo por ser díficil acompanhar o ritmo dos mais velhos, o apoia e partilhando a sua caixinha com o escaravelho azul arroxeado que encontrou. Aos restantes adultos, cabe-lhes a responsabilidade de celebrarem o regresso do grupo e os ajudarem a decidir o que fazer com “a vida”.
E é aqui que a família e a comunidade se juntam na equação. Pois, não há adulto que não festeje a vitória das crianças – o regresso a casa após a descoberta do escaravelho. Como se a missão “descobrir a vida” começasse com a excitação de uma aventura por explorar que envolve a criança, a família e a comunidade num harmonioso círculo, que só está completo quando a generosidade é posta em prática por todos.
No japão “ser Yasashi” – ser generoso – é mais que um conjunto de regras ou princípios. É uma forma de vida. E é dado a todos, independentemente da idade, a responsabilidade e oportunidade para a pôr em prática. Agir generosamente, significa ter a oportunidade de partilhar algo com a comunidade, que consequentemente, retribuirá com inspiração para novas vivências. Por isto, uma das perguntas que faço pelos quartos cantos do mundo é o que podemos fazer para tornar o dia de alguém mais feliz. E enquanto na Serra leoa e em Portugal a criançada me falava em atos como “ajudar quando alguém me pede ajuda; cumprir as regras lá de casa”, “fazer menos birras” ou ajudar o amigo que está triste”. No Japão as respostas vinham com uma pergunta: “onde? Na escola, na comunidade ou na família?” e só depois havia uma sugestão. De facto, desconstruir a generosidade desta forma, facilita a ter mais foco e ação.
Por curiosidade, em Kannami, a maioria das respostas focava o “presentear a minha amiga com o escaravelho”, “levar-te comigo a descobrir escaravelhos”.
Por definição generosidade é: Dar e partilhar acima de qualquer interesse ou utilidade, acrescentar algo ao próximo. Por isto, acredito que e a concretização de algumas das emoções mais importantes na relação com os outros, como a empatia ou a compaixão, seja a generosidade. Vários estudos indicam que a prática de atos generosos contribuem não só para o bem-estar de quem os recebe, mas também, para quem os pratica. Reduzem o stress, melhoram a depressão, previnem o isolamento, trazendo sentido de pretença e melhorando a qualidade das relações, dão sentido de propósito, e ainda dão perspetiva.
Quando sofremos tendemos a autocentrar-nos, mas os atos generosos exigem a que olhemos para fora, nem que seja para descobrir as necessidades do outro para lhe demonstrar que “o queremos bem”. Daí que o próprio Dalai Lama sugira que se queremos ser felizes, pratiquemos compaixão e generosidade.
Segundo o Jornal expresso, um estudo internacional de 2016 coloca Portugal em 82º lugar no ranquing de generosidade. Questiono até se não fará sentido introduzir uma disciplica “generosidade” no curriculo escolar obrigatorio. Não só funcionaria como um preventivo ao nivel de saúde mental (já que contribui niveis mais altos de oxitocina, serotonia e consequentemente produtividade da sociedade), como também para os casos de depressão, funcionando como um anti- depressivo natural.
Como ainda não chegamos aí, porque não introduzi-la como uma prática diária na vida das crianças, tão importante como a higiene oral?
Aqui fica uma ideia de atividade que treina a generosidade e que podem fazer em família lá em casa.
O calendário de atos generosos
Com a criança, criar um calendário familiar mensal de atos generosos. Pode fazer em papel e depois de definirem os atos que cada elemento da família pode fazer, em cada quadricula desenham algo que represente o ato.
1. Começar por dar uma definição de ato generoso à criança: É um ato ou palavra simples, que não envolve dinheiro que faça o dia de outra pessoa mais feliz.
2. A seleção dos atos, podemos dividi-los por áreas. Podem ser na e com a família, na comunidade ou na escola/trabalho.
3. Idealmente cada elemento escolhe os atos consoante a sua idade. Só há uma regra, que todos têm a responsabilidade de pôr os seus atos em prática. Relembro, que as crianças têm tanta responsabilidade quanto os adultos, têm apenas outro tipo de autonomia.
Aqui fica um exemplo de alguns dias do calendário, com ator generoso. Que deve ser afixado no frigorífico até que o mês acabe:
Bom Setembro e enquanto não começam as aulas dos mais novos, aproveite para começar uma troca de atos generosos no seu Bairro!